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quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Ele disse, ela disse

Foto: gerada pela ferramenta de criação do Bing.

Ele disse que foi espontâneo.

Ela disse que estava reparando na pinta que ele tem pouco abaixo do lábio inferior e acabou se esquecendo de puxar assunto.

Ele disse que a conversa estava ótima, mas que não via mal em tirar uns momentos para contemplação. Tinha muito a contemplar, ele disse.

Ela disse que deixou a pinta de lado quando reparou melhor naquele sorriso tímido, na boca que ainda estava vacilante sobre falar algo ou deixar que sobreviesse o silêncio; ela também estava, mas não quis dizer nada.

Ele disse que chegou à conclusão, naquele momento, de que ela era a moça mais bonita com quem já havia saído.

Ela disse que não era incomum conhecer rapazes mais charmosos que ele, mas ele era, sem dúvidas, um dos mais carismáticos.

Ele disse que perdeu a noção do tempo naquele lugar em que tudo o que existia eram seus olhos e olhos dela, ambos os pares se atraindo e tragando-os para si.

Ela disse que não sabe qual música estava tocando de fundo.

Ele disse que também não faz a menor ideia.

Ela disse que não sabe se foi antes ou depois de pedirem as bebidas.

Ele disse que ela foi a primeira pessoa que pareceu notar a pequena cicatriz abaixo do seu olho direito.

Ela disse que ficou curiosa quanto àquela minúscula cicatriz, mas não quis quebrar o silêncio para perguntar.

Ele disse que o silêncio acalmou seu coração, antes disparado, tranquilizando-o por inteiro.

Ela disse que o silêncio a embalou e a colocou numa posição de conforto como nunca tinha sentido em um primeiro encontro.

Ele disse que não havia como se cansar de admirar cada detalhe do rosto dela; particularmente, quando os olhos deixavam, ele sempre voltava para as bochechas e para a ponta do nariz.

Ela disse que o rosto dele ia se tornando mais lindo a cada segundo.

Ele disse que tinha centenas de assuntos que queria conversar com ela – já até havia imaginado alguns diálogos na sua cabeça –, porém, a seu ver, isso podia esperar.

Ela disse que não planejou pegar na mão dele, simplesmente aconteceu.

Ele disse que não planejou pegar na mão dela, simplesmente aconteceu. E quando os dois viram, estavam com os dedos entrelaçados.

Ela disse que a cor dos olhos dele era verdadeiramente única.

Ele disse que nunca gostara dos seus olhos, de um castanho tão comum; mas em nenhum momento sentiu vergonha.

Ela disse que também não sentiu vergonha, ao contrário, queria que ele visse o que havia além daquilo que sempre admiravam ou rechaçavam.

Ele disse que às vezes percebia pessoas ao redor observando curiosas, mas as ignorava completamente.

Ela disse que não foi difícil esquecer que estavam em um restaurante.

Ele disse que esperava que um incêndio não começasse perto deles, pois eles demorariam bastante para notar.

Ela disse que a mão dele era cálida e um pouco áspera.

Ele disse que de vez em quando o sorriso dela se alargava com leveza, e nesses momentos ele se arrependia de não ter consigo uma aliança.

Ela disse que tudo aquilo era uma loucura, no entanto era uma loucura que estava adorando.

Ele disse que sua impressão era que naquele tempo a pôde conhecer melhor do que se tivessem passado horas jogando conversa fora.

Ela disse que entendeu muito dele enquanto seus olhos não podiam – e não queriam – fugir dos dela.

Ele disse que sempre gostou de observar a natureza desabrochar; e ali à sua frente estava a obra-prima entre todas as coisas mais belas do mundo, desabrochando sob seu olhar atento.

Ela disse que gostava de ir em museus e contemplar graciosas estátuas em seus mínimos detalhes.

Ele disse que a pupila esquerda dela era um pouco maior.

Ela disse que era verdade.

Ele disse que foi como um beijo, mas de olhos bem abertos.

Ela disse que foi bem melhor que muitos beijos.

Ele disse que ali teve o impulso de pedi-la em namoro, porém achou cedo demais.

Ela disse que teria aceitado.

Ele disse que tinha esperanças de que o restaurante fechasse e simplesmente os esquecem lá, para que eles pudessem continuar se encarando noite afora.

Ela disse que naturalmente apoiou o rosto em sua mão, como quem se prepara para ficar na mesma posição por horas a fio.

Ele disse que havia uma beleza no fundo dos olhos dela que, por fim, o deixou sem reação.

Ela disse que a graça daquele instante era que nenhuma ação ou reação eram necessárias.

Ele disse que não sabia as regras.

Ela disse que não havia regras.

Ele disse que começou a ficar receoso sobre a hora em que aquela conexão iria se romper e a magia talvez se esvanecesse.

Ela disse a ele que não se preocupasse com isso agora – e o fez ainda em silêncio, apenas com o olhar.

Ele disse que se acalmou.

Ela disse que sorriu.

Ele disse que aquele sorriso o iluminou por dentro.

Ela disse que sabia que ele sentia o mesmo.

Então ele disse...

Então ela disse...

Até que eles perceberam que não precisavam dizer mais nada.

sábado, 12 de junho de 2021

A tempestade que chega é da cor dos teus olhos

Foto: archibald, via Flickr



Logo eu, que sempre invejei os genes dos ramos mais turmalina da família.

Eu, que no íntimo desejei uma miopia a ser corrigida com lentes de contato — coloridas.

Eu, que gastava o lápis azul para pintar, em meus rabiscos, dois reluzentes olhinhos em cada personagem, espelhos do meu desejo.

Eu, que cheguei a fazer promessa com a fé de que minhas íris perdessem ao menos um pouco de seu pigmento.

Eu, justo eu, perdi-me em contradições e mergulhei até ficar sem ar em uma piscina com águas turvas; turvação de cor castanho-escura, assim como os meus, assim como os dela.

Foi no instante em que ela me olhou da primeira vez. Foi também pela maneira como me encarou após o jantar de ontem. É, na verdade — devo confessar —, a cada uma das vezes em que ela me focaliza. Quando estou em seu foco, estou no seu espaço. É escuro, mas não vazio. É tão cheio de estrelas que há energia suficiente irradiando e me fornecendo calor. Talvez não sejam estrelas, tal quais as pintinhas em suas têmporas, com as quais me divirto a formar constelações. Sim, talvez não sejam estrelas, mas definitivamente brilham; e se eu enxergo esse brilho é porque ele contrasta com o fundo de um escuro sidéreo. Nele, sou astronauta, como em meus sonhos de criança.

O que aliás diria meu eu-criança sobre minhas contradições? Ou melhor: o que eu teria a lhe dizer? Que azul é uma bela cor, no entanto há outra que a supera em vivacidade? Que a combinação de todas as tonalidades virtuosas não resulta em preto, mas em uma cor única que eu e poucos tivemos o privilégio de captar? Que, se eu pudesse escolher, passaria a eternidade, em pé ou sentado, deitado, ajoelhado — em condição de agradecimento —, esquadrinhando cada camada daqueles dois pequenos círculos?

O equivocado garoto que fui, decerto não conseguiria compreender a Verdade que eu avistei naquele olhar. Sim, eu descobri a cor da Verdade tão logo a reconheci: e ela nada tinha de azulado, senão uma tonalidade dura e imaleável, quase segura. Uma cor que não instava que eu me aproximasse, contudo tornava impossível que dela eu me desviasse. Mais que atraente, era necessária. E mesmo quando o corpo ludibriava e a língua tentava enrolar, seus olhos ainda eram sinceros comigo. Neles buscava todas as respostas de que precisava e só houve uma que procurei em vão, ainda que fosse tão simples como um sim ou um não; naquele momento, porém, só encontrei reticências circulando e entendi que aquela era então a sua verdade. Entendi que suas pupilas eram ímãs que ora tinham polaridade positiva, logo me puxavam e me arrastavam de um jeito inexoravelmente magnético; mas ora eram negativas, como as minhas, quando então tendiam a me repelir, pois queriam estar sós, livres, presas a nada. Nos dois instantes, elas continuavam belas e firmes, como mágica.

Uma mágica que eu adorava admirar todas as manhãs em que eu despertava primeiro e podia assistir as suas pálpebras descobrindo as janelas e permitindo que a luz entrasse em mim. Luz amarronzada que refletia dos seus olhos para os meus, permitindo que eu apreciasse em detalhes cada um daqueles dois olhos-de-tigre. E, por um segundo, eu hesitava em beijá-la, porque não queria perder os olhos dela de vista, queria-os sempre abertos, atentos, para continuar a decifrá-los, como quando ela coloca a máscara e é unicamente por meio deles que devo adivinhar seus sorrisos, suas tristezas, suas dúvidas e relutâncias.

Logo eu, que almejava o azul do céu, fui contemplado com todo o universo. E enquanto ela retribuir meu olhar, este será meu farol e eu saberei, assim, para onde rumar.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

O erro de Psiquê (ou Cada uma das infinitas faces do amor)

 


Dentre tantas coisas que não conseguia compreender, uma delas era por que lhe haviam dado aquela incumbência. Considerava-a injusta, contraditória e sua realização parecia impossível, até mesmo para alguém como ele. Veja que seus feitos não eram poucos. Quanta inspiração ele já não havia soprado, quantas primaveras não haviam sido possíveis apenas por conta de seu toque de vida. Entretanto, agora estava lidando com algo ainda mais incompreensível e não entendia a razão de precisarem daquilo. Não haviam homens e mulheres vivido perfeitamente bem sem saber do amor até agora? Que súbita necessidade era essa de dar forma a sentimentos tão ignotos, mesmo entre os seres superiores? Por que tirar de Eros a exclusividade dos segredos daquela arte tão sutil e excelsa?

Precisava no entanto admitir que, e qualquer um de seus pares haveria de reconhecê-lo, ele era o melhor no ofício da formação. Dava forma ao que quer que fosse: moldou os vários tipos de alegria; construiu os tristes muros que separam cada pessoa de seus semelhantes; aperfeiçoou a melancolia, antes tão seca; e, em um esforço digno de grande mérito, mostrou ao mundo sua versão da saudade, que logo foi adotada por todos.

Agora... o amor?

Amor, aquele rompante incendiário que aquieta qualquer chama descontrolada? Aquele que aquece como o verão, desabrocha como a primavera, acolhe como o outono e sossega como o inverno? O amor que é luz, mas nunca é visto, pois tão intenso é seu brilho que ninguém consegue divisar suas fronteiras, fazendo com que ele se confunda com o próprio espaço em que se imergem tudo e todos? O mesmo amor que guia cada ato de bondade e justiça a troco de ser mal compreendido e confundido com todos os outros sentimentos existentes? Como se amor fosse um sentimento; como se o amor brotasse em cada coração de forma individual e não fosse o ritmo de cada batida e a sincronia entre todos os corações pulsantes. Como se o amor não fosse o fôlego que ele mesmo tira dos apaixonados e distribui entre cada ser prestes a receber o sopro da vida. Amor, aquele que antecede à própria vida e se confunde com o ato de criação. E, no entanto, haviam colocado sob sua responsabilidade conceber o que concebe.

Estava tendo um sério bloqueio. Andava para lá e para cá, observava de longe a interação dos casais, interceptava e sem pedir permissão lia (mais por deleite do que por outra coisa) várias das cartas trocadas entre amantes, anotava tantas juras de paixão quanto pudesse testemunhar, desde as mais sucintas até as mais emocionadas. Chegou a recolher lágrimas tímidas de noivos quando viam a noiva na porta, prestes a caminhar sua vida até ele; e as lágrimas aliviadas das noivas quando o sim era recíproco. Entendeu que tentar compreendê-lo seria rir de si mesmo. Muitos artistas tentavam e acreditavam ter grande sucesso na empreitada, mesmo que o amor capturado pelos seus pincéis e canetas-tinteiro fosse uma única faceta de algo com infinitas faces.

O que mais o indignou, porém, provavelmente foi escutar de pobres desamados que o amor fere; dói; trai o corpo e a alma. Que ingenuidade! Como poderiam tomar aquilo por amor? Como não se distingue a pureza e a beleza de um diamante do corte que advém de suas pontas lapidadas caso seja manuseado indevidamente? Indignado, pôs-se a trabalhar com ainda mais afinco, pois decidiu que era hora de o mundo conhecer o que o amor significava de fato. Se eles compreenderiam, não sabia dizer, até apostava que não, mas a obra isentaria o artista de quaisquer explicações.

Tinha em frente a si um espaço em branco. Preencheu-o logo com cores, todas elas, tomando o cuidado de deixar um espaço vazio, para sinalizar que sempre haverá algum lugar para onde ele ainda resta crescer. Formou com elas a forma perfeita – uma esfera –, mas por ser composta de todas as outras formas, tinha também arestas, porque assim deve ser. Fê-la do maior tamanho que conseguiu com seus materiais, tomando cuidado para que ela coubesse no menor dos átomos do menor dos seres vivos, pois em nenhuma célula deveria haver falta de amor. Seu primeiro modelo foram os lábios, mas percebeu logo que era nos olhares que deveria buscar sua inspiração; entretanto, acabou confessando ter usado também as mãos entrelaçadas, os narizes se tocando, os pés se esquentando e o corpo todo quando se molda em um abraço.

Para a finalização da peça, a fim de que ela ficasse irretocável, consultou Diotima de Mantinea e a sacerdotisa ensinou-lhe, como havia ensinado antes a Sócrates, sobre as escaladas do amor. Consultou ainda a São Valentim, que lhe contou segredos nunca antes verbalizados sobre o matrimônio e por que, na vida a dois, os silêncios são mais importantes do que aquilo que se diz um para outro. Contudo, nada talvez tenha o surpreendido mais do que o real simbolismo por trás da troca de alianças... Tudo isso foi material para que o esculpir fosse se moldando na forma última.

Quando deu por terminado, ficou todo orgulhoso – como talvez fosse de se esperar – e sentiu o ímpeto de exibir sua recriação. Por vaidade, procurou logo o Cupido, certo de que ele, autoridade no assunto, aprovaria seu trabalho. O ser divinal, no entanto, após elogiar seu esforço, declarou que estava incompleto. Ora, o que faltava? Em resposta, o Cupido o pegou pela mão e o levou para observar um casal que ele havia flechado tempos atrás.

Eles estavam, ainda, se conhecendo. Era a beleza da descoberta que estavam presenciando. Às vezes, era por meio das conversas: as mais aleatórias possíveis e todas as vezes seguindo rumos inesperados, sem pressa alguma de chegar a algum lugar. Outras, era através de uma cumplicidade muda, pois nem sempre palavras precisam ser gastas. Muitas vezes era com a ajuda dos gestos, do tato, do toque, da sensibilidade. As mais impressionantes eram pelo olhar; bastava eles se cruzarem, a conexão era imediata e a mais sincera de todas, já que os olhos não conseguem mentir. Mas a descoberta também se dava pelos perdões e pelo agradecimento. “Preciso ir”. “Por favor, fique”. “...Fico”.

Cupido perguntou se ele compreendera e ele respondeu que sim, pois verdadeiramente havia entendido sua falha.

Questionou a si mesmo se haveria um jeito de consertá-la, porém sabia que não. Essa sua tarefa estava – como esteve desde o princípio – fadada à incompletude, à imperfeição. Mesmo assim, ele conseguia sentir paz. Percebeu enfim que mesmo o maior dos artistas era menor que o que estava por trás daquelas poucas letrinhas. Em português, apenas quatro. Uma constelação de só quatro grandiosas estrelas e outras milhares menores, invisíveis a olho nu. E um brilho visto do outro lado do universo.

O jeito era torcer para que cada um dos seres fosse capaz de usar essa força com sabedoria. Quando, sem remorsos, decidiu destruir sua obra inacabada, fez isso despedaçando-a em milhões e milhões de pequenos pedaços, que a boa brisa acabou por carregar. Carregou através do tempo e do espaço e foi levando aqueles invisíveis fragmentos. Até hoje, dizem, ainda é possível encontrar alguns por aí, mas – um detalhe – eles só são vistos no contraste com algo muito único: a visão da pessoa amada.

Fonte: Janella Sillito, via Flickr.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Casulo

Percebi que tinha algo errado quando comecei a trocar o dia pela noite. Minha rotina de almoçar tarde já vinha desde os tempos da agência, porém agora o almoço havia tomado o lugar da ceia: eu degustava um macarrão com molho caseiro observando o cair do sol. Por volta de meia-noite, eu ia preparar minha janta, que me sustentaria noite afora. Elaborava os mais requintados pratos que conseguia, tomando cuidado para não fazer muito barulho e perturbar os vizinhos que já dormiam. Ou talvez não dormissem, como eu, que jamais tivera um sono de qualidade desde que isso começou. No entanto, dia após dia, insistia em colocar a cabeça no travesseiro e tentar pregar os olhos. Para atrapalhar, ainda precisava lidar com a luz que ignorava as cortinas e inundava o quarto. A essas horas, em tempos menos catastróficos, eu estaria na minha segunda ou terceira xícara de café, chegando ao auge do meu estado de vitalidade laboral.

Depois de duas semanas, usei alguns sacos de lixo e outros remendos para cobrir os vidros e poder dar ao meu corpo as condições de repousar, uma compensação por ter bagunçado todo o meu relógio biológico. Não adiantou, mas pelo menos agora eu tinha um canto escuro no aparamento, um ambiente mais propício para refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Eu poderia até fazer isso durante a noite ou de madrugada, mas estes eram meus novos horários preferidos para cumprir com todas as minhas obrigações diárias, com a empresa e com minha própria casa. Nada mais favorável para a concentração e a produtividade do que trabalhar sob o silêncio noturno. Quando amanhecia e o movimento dava sinais de despertar, era minha deixa para me recolher à escuridão artificial do meu quarto.

Em alguns dias, a fraca claridade que ainda conseguia espreitar pela janela passou a me incomodar e eu fui obrigado a pregar dois cobertores por cima para barrar qualquer feixe mais atrevido; executei esse projeto com tanto esmero que já nem sabia como faria para retirar todas as camadas de bloqueio e abrir a janela novamente. Não havia problema: a esperança de que eu precisasse abri-la para observar algo lá fora parecia muito, muito distante. Mais mórbidas que as trevas que me embalavam eram as que me consumiam por dentro. Às vezes eu pensava haver me esvaziado, contudo quando eu investigava mais a fundo, descobria que estava preenchido por essa desilusão e amargura.

Se espiava pela janela e via as ruas todas desertas, me desesperava. Agora, se – o que acontecia com mais frequência – vislumbrava pessoas a caminhar ou carros zanzando para lá e para cá, minha reação era muito pior. Crescia dentro de mim um ódio, eu não sabia exatamente de quê ou de quem, só sabia que me espetava. E que aquele sentimento, de mãos dadas com a angústia que não me largava, retorcia todos os meus órgãos e me sufocava pelo menos uma vez por dia.

Achei melhor não olhar mais. Ao menos, não para baixo. Olhava apenas reto, pois no prédio em frente havia ela. Ela que também estava confinada, embora eu desconfiasse que fosse ao mercado ao menos uma vez por semana. Eu sei que nem todos fizeram como eu e estocaram alimentos suficientes para meses, no entanto eu ainda a alertava para só sair de casa quando já não houvesse um único pão com molho de tomate para fazer as vezes de uma refeição. Ah, mas ela não queria ficar sem o pão brioche dela... E as verduras sempre frescas... Não, ela não me contou, mas eu sei. Nossa comunicação ficou um tanto prejudicada depois que meu celular caiu na pia – enquanto eu tentava assistir a uma live e lavar a louça – e não quis mais ligar. Desde então, eu não tenho notícias de mais ninguém. E certamente não me arriscarei no cenário apocalíptico em busca de alguém que o conserte: nem sei mais onde deixei as chaves da porta da frente. Voltei àquela era esquecida em que, para saber de alguém, era preciso visitá-lo. Não vi nisso problemas; meus pais eram os únicos que poderiam depender de mim de alguma forma e, da última vez em que nos falamos, eles estavam muito bem. Melhores do que eu inclusive, já que lá naquela casa de campo ninguém chega; e, de todo modo, como eu poderia contribuir com alguma coisa estando em outro estado?

Chateou-me, contudo, não poder mais jogar conversa fora com ela. Muitas vezes eu trocava as manhãs de sono por uma ou duas horas de falatório com aquela mulher de olhos brilhantes e sotaque engraçado. Agora, só um aceno da janela. Era tudo. De algum jeito conseguimos combinar o horário e sempre que dava cinco horas da tarde, estávamos os dois nas suas respectivas janelas, sacudindo as mãos, mandando beijos, simulando os abraços que retribuiríamos quando tudo isso acabasse – e eu aproveitava para exibir minhas novas obras culinárias. Alguns dias ela se esquecia, mas eu não achava ruim; também não a cobraria quando um dia voltássemos a estar cara a cara. Entendo que às vezes, em tempos como esses, tempo é um conceito confuso e fugidio.

Estranho, realmente, foi quando ela deixou de aparecer três dias seguidos. E então no quarto, quinto, sexto. Uma semana e eu já amargava mais essa desilusão, pronta para ser arquivada com as outras. Talvez, contra todos os meus princípios, eu pudesse ter entrado em alguma rede social e enviado mensagens de interrogação, no entanto eu não queria achar que estava desesperado a esse ponto. Eu tentava com certa insistência recuperar meu celular, em vão. A tela preta era tudo o que ele tinha a me oferecer; além de quase que uma sombra do meu próprio reflexo. Não era o suficiente. Eu precisava dela. Das suas palavras, duras ou não. Da sua voz. Do seu sotaque. O seu afago também fazia falta, mas eu sentia que poderia pacientemente esperar por ele.

Alguns dias depois, estava deitado em meu sofá, tentado a ligar a televisão – o que não acontecia há mais de um mês –, quando pensei ter avistado alguém na janela dela. Seria ela enfim? Estava longe das cinco horas, mas a essa altura quem ainda olha no relógio? Levantei-me para observar mais de perto, porém logo o vulto desapareceu e não retornou pela próxima meia hora, até eu desistir da tocaia. Não saia da minha mente, todavia, que a figura parecia ser masculina. Mesmo eu só tendo visto-o de relance, na minha memória o contorno, a roupa e o andar pertenciam a um homem, o que era curioso, já que ela morava com a tia apenas.

Estranho. Naquele mesmo dia, pulei alguma refeição, porque passei horas buscando material dentro da minha própria casa para fazer naquela janela o que já havia feito no meu quarto. Já não havia mais o que ver. O barulho do trânsito me dizia que o fluxo de pessoas ainda não cessara, todavia não havia nada que eu pudesse fazer para abafar o som. Entretanto, eu podia, sim, colaborar para que eu não caísse na tentação de espiar a vida na cidade, que decerto estaria debilitada em poucos dias.

Cobri tudo. Todos os vidros. Bati pregos, sem me preocupar com os furos, nem com o trabalho que teria, no final, para reverter tudo aquilo. Estraguei roupas de cama, arrastei móveis, tudo enquanto sussurrava a mim mesmo do futuro que não se preocupasse, era para o nosso próprio bem. Quando isso tudo passar, pensei, descobrirei cada uma das janelas com o prazer de quem está prestes a enxergar o colorido da vida pela primeira vez. Haverá movimento em todo lugar e isso, em vez de rancor, me trará alegria como nunca antes. Mas, por agora, não preciso de nada disso. Também não preciso de notícias ou tragédias em tempo real. Nem dos meus amigos e familiares, nem mesmo do mundo.

Eu tinha meu próprio mundo e nele me fechei. Ele era escuro, iluminado apenas artificialmente, mas era livre de vírus. Na verdade, era livre também de qualquer expressão de otimismo ou vontade. No começo, pareceu-me uma troca justa. Alguns meses depois, eu estava cansado demais para decidir sobre o valor de qualquer coisa. O barulho lá embaixo havia se intensificado, eu só não sabia se era fruto de uma crescente inconsequência das pessoas ou se, de fato, a cidade estava esterilizada. Na dúvida, não arrisquei. Tinha certeza de que, quando isso tudo acabasse, alguém bateria na minha porta para me avisar que era seguro sair. Talvez seria ela a bater. Viria até mim com saco de pipocas para estourarmos no meu micro-ondas e assistirmos a um filme francês. Como nos velhos tempos.

E o que normal já foi um dia, normal de novo seria.

Até lá, só me resta aguardar.

Em silêncio.

terça-feira, 12 de junho de 2018

A maré

Ana está prestes a entrar no metrô. As portas já se abriram e em segundos se fecharão. O casal dá um último abraço e um beijo rápido. Ela carrega duas malas, seu destino é provavelmente o aeroporto e, de lá, alguma terra além das fronteiras imaginativas. Ana se encaminha para o vagão e, antes que ela entrasse, antes que a distância entre eles comece a aumentar a uma velocidade de quase 80 km/h, ele grita uma última declaração. Não é um “eu te amo”. É um “me espera”. Não deu para ver se ela sorriu em concordância ou se ela deixou transparecer sua desesperança de que se veriam novamente em breve. Em instantes, o trem já avançava pelo túnel, deixando o jovem desamparado e sozinho na estação; ainda há bastante gente ao seu redor, mas nenhuma delas é Ana. Após conferir as horas no celular, ele sai em disparada pela escada rolante e desaparece no andar de cima. Talvez estivesse atrasado para o trabalho que tinha conseguido a fim de juntar dinheiro e conseguir pagar uma passagem para ficar junto de sua namorada. Ou talvez não tivesse conseguido segurar a ansiedade e marcou de encontrar a amante logo pela manhã para celebrar que já não precisava tomar cuidado para que não fosse flagrado por Ana. O amor tem desses mistérios.

Se tem algo que pode melhorar substancialmente meu humor, ao menos por uns minutos, é avistar um casal na rua. Pode parecer incompreensível, pois você não conhece aquelas pessoas, não sabe nada do seu contexto, não faz ideia se eles tiveram uma briga homérica pela manhã nem se terminarão naquela mesma noite, porém, naquela captura instantânea da história do casal, eles parecem felizes. Estão se abraçando. Estão rindo juntos. Estão se dando as mãos  —  ainda que por hábito  — , entrelaçando-se em uma rede que os conecta, permitindo-se usar da sensibilidade dos dedos para sentir o outro, para mantê-los em contato, mesmo que o pensamento esteja em outros lugares. Eles se escolheram. Talvez em uma festa, sob o som de uma irritante música eletrônica, quando ela tentou a sorte e perguntou o nome daquele garoto apoiado no balcão. Ou vai ver eles passaram meses conversando, sem perceberem que eram a melhor companhia um do outro, até que o ficar juntos pareceu o rumo mais natural.

Hoje é a data escolhida para celebrar esses encontros. Uma escolha arbitrária e calcada em interesses econômicos, sem dúvida — nós nem sequer temos a chance de nos escorarmos em São Valentim (ao menos nossa comemoração é mais próxima do inverno) —, mas nossa facilidade em cair na rotina pede essa lembrança, um dia no ano que seja, para que não nos esqueçamos de festejar esse amor. E não se trata de qualquer amor. Os gregos já dividiam esse sentimento em vários, porque entendiam que o amor é muitos. Inclusive o amor-próprio, que sem dúvidas é fundamental, não me parece competir com o amor romântico.

“Ame a si mesmo antes de amar outra pessoa”, muitas vezes me disseram, possivelmente ignorando que o amor é a terra mais fértil e que, se você não esperar, sempre lhe dará frutos, muitas vezes na forma de mais do mesmo sentimento. Assim, quem tem amor nunca sofrerá da falta dele, e não há caminho mais fácil para se aceitar do que se doar e, então, conhecer a melhor versão de si.



Artur e Amanda terminaram. Eu suponho que sim, porque hoje ele não está no ônibus. E hoje é sábado. Sábado é o dia em que ele pega o mesmo ônibus que eu, pontualmente neste horário, para visitar Amanda, moradora de uma cidade vizinha. Ao menos, é o que imagino; nós nunca trocamos uma palavra. Hoje senti a ausência de Artur e lamentei por ele. Provavelmente está em casa tocando violão para tentar se distrair, evitando todas as músicas que ele tocava especialmente para Amanda — e são muitas. Ele adorava tocar enquanto ela o acompanhava com sua voz carregada de um delicioso sotaque. Artur até chegou a arriscar compor algumas canções para sua amada. Já tinha um novo rascunho que planejara finalizar antes do aniversário dela, em algumas semanas. Agora, não tinha mais sentido encontrar uma boa rima para “deslumbrado”. Ele ainda usava a palheta que ela lhe dera no Natal, personalizada com o nome dos dois e a data em que começaram o romance. Festejavam todos os anos aquele primeiro beijo no meio de sorrisos. Aquele momento imortalizável que deveria ter durado para sempre, mas foi cruel o suficiente para acabar. Deixou saudades, remorso, lágrimas e diversos presentes trocados, inclusive o pingente que ele mantinha no pescoço como sinal de resistência. Ainda era cedo para dar o término como definitivo. Fazia apenas dois dias a discussão, ainda havia esperanças. Mesmo que Amanda tenha alegado estar confusa e apesar de ela não ter derramado uma lágrima sequer ao explicar didaticamente sua decisão. Sua não; de seu coração, ela disse. Talvez neste exato minuto o celular de Artur esteja tocando. O coração dele dispara. É Amanda. Ele sabia que a relação deles era pra valer. Tantas coisas ainda havia para eles fazerem juntos! Tantas viagens, tantos restaurantes que queriam conhecer, o cachorro que iriam adotar em conjunto (já tinham até uma lista de nomes!)… O rapaz agarra o celular com avidez e atende sem olhar. Era engano.

Dos conselhos para hoje, o mais importante deles certamente não é “compre flores”, nem “compre chocolate” ou “compre qualquer coisa só para não passar em branco”, nem mesmo “surpreenda a pessoa que você ama” — apesar de ser bem difícil fugir dessa chuva de imperativos vazios. A questão, que não vale somente para hoje, é: seja grato. É como dizem certas músicas…

“Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver alguém que você gostaria que estivesse sempre com você…”

Pois bem, leve a sério. Há literalmente bilhões de pessoas no mundo e se alguém, dentre todas as opções (que não são tantas, mas estão cada vez maiores), escolheu você, sinta-se privilegiado. Não foi uma escolha para compor um time e jogar uma partida de 90 minutos. Foi uma escalação para o mais alto grau de companheirismo; para estar ao seu lado em qualquer circunstância, para não te deixar só e suportar contigo suas dores; foi para se esforçar em te fazer feliz, celebrar cada passo adiante e cuidar para que você não retroceda. Isso tudo será o famigerado amor? Acredito que não. Mas um relacionamento não se constrói apenas com amor. É um amalgama dos mais poderosos que, quando bem cerzido, é um belo exemplo de bondade, paciência, carinho, paixão e diversas outras virtudes tão humanas.

Talvez você já tenha dado mil abraços na pessoa adorada, mas o de hoje será especial. Não porque o dia é especial; o dia é o mais ordinário de todos e pelo mundo afora há milhões de pessoas com preocupações maiores que o ursinho de pelúcia que você comprou e tem medo de ela não gostar. Mas por trás de toda essa agitação materialista, esconde-se uma mensagem trazida do fundo da natureza, que hoje, como todos os dias, tem a atenção voltada para você e seu cônjuge, e a mensagem diz: ame. Ame o quanto for possível. Ame, seja o melhor de si mesmo. Ame, porque o elo que o verdadeiro amor constrói, é resistente ao calor de uma forja, a uma broca de diamante, ao espaço e ao tempo. Diferente de flores e chocolates.

Anita se acabava em lágrimas, alheia aos curiosos que cruzavam pelo meio da praça observando a cena. Alexandre também não se importava com os olhares, só parecia querer o bem da moça. Seu abraço era um escudo de consolo, protegendo-a contra insignificâncias externas. Ela havia perdido a data de inscrição para o vestibular. Ela havia perdido o emprego. Ela havia perdido a avó. Alguma coisa nela estava agora faltando, havia um buraco que não se preenche fácil e muito lentamente se cicatriza. Alexandre não era habilidoso com a linha, e ainda que fosse, seria incapaz de costurar o coração da menina e suturar essa latente ferida. Entretanto, lá estava ele aquecendo-a com um abraço. Um abraço que, com certeza, não era só físico. E, ao mesmo tempo que dava atenção ao vazio, embalava-a com palavras de conforto. Ela podia contar com ele. Ele podia contar com ela. Contavam juntos e chegavam ao mesmo resultado: um.

“É impossível ser feliz sozinho”, alegou o poeta. Hoje acho que entendo o que ele quis dizer. É claro que você não precisa se envolver com alguém para encontrar sua felicidade. Não se trata desse tipo de impossibilidade. A bem da verdade, eu acredito que você pode até encontrar a felicidade só, em uma caverna, consumindo apenas o necessário, sem afetos, sem amigos, sem família, distante de tudo e de todos. A questão, ouso afirmar, é outra: por que alguém iria queria ser feliz assim?



Bônus :)

sábado, 31 de outubro de 2015

Polaroids (I)


CENA 099
Sento-me no balanço, ao seu lado, e ao invés de perguntar o porquê de seus pés estarem fixos na areia e você não estar acompanhando o fluxo do vento, apenas me viro a te contemplar. Sempre foi assim. Poucas perguntas e muitos vislumbres. Da parte que lhe cabe, houve tantos questionamentos quanto silêncios; vários instantes de relutante admiração como de olhares fugidios, evitando encarar meu semblante de culpa – a expressão que, talvez, já seja minha máscara mais recorrente: uma marca d'água que, não importava minha feição, permanecia lá inesquecível, lembrando-te de todos os meus deslizes. Seu rosto, por outro lado, nunca vi tão belo. Não havia mais nada à minha direita ou em qualquer outra direção que não à minha esquerda, onde você e sua graça repousavam no balanço. Imaginei logo uma margarida presa nos seus cabelos escuros, véu brilhante que acompanhava o movimento das águas; a flor, pequeno sol, seria a perfeita antítese ao seus olhos, também quase negros. Quando passei por seu nariz delicado e cheguei à sua boca, percebi meu engano: era muito mais solar que as pétalas imaginárias, deixando claro por que seu beijo me revigorava sobremaneira, como se eu tivesse sido invadido por toda a luminosidade que expulsa a noite. Mas daquele momento, eu estava a semanas de ganhar outro beijo seu e não sabia. Se soubesse, talvez teria me balançado tão alto a ponto de ganhar impulso e chegar até a lua – gelada e deserta, como eu me senti nos dias que se seguiram.




CENA 226
Foi por muito pouco que a lâmina não faz um corte na minha face daquela vez em que eu já estava com creme de barbear por todo o rosto e você gritou que eu parasse imediatamente. Achei que seria uma boa ideia aparecer na entrevista de emprego (tão raras!) de 'cara limpa', mas seu argumento de que você preferia eu assim, com cara de hipster, venceu-me em poucos segundos – ainda que eu preferisse um rock mais clássico. Você sempre me vencia, e eu me sentia como derrotado, perdedor. Lavei-me e deixei que você sentisse minha barba com suas mãos e depois com seu próprio rosto. Nunca entendi como uma pele tão macia poderia preferir a aspereza. Era lógico, mas eu não compreendia. Assim como tinha dificuldades de entender como seu coração foi escolher justo a mim. Será que era lógico também?



CENA 21
Eu só sabia rir. Nunca achei que me tornaria esse tipo de pessoa, sinceramente. No entanto, depois do nosso terceiro encontro, eu havia me feito uma pessoa boa; ou melhor, você havia feito isso por mim. A lembrança do sorvete no canto da sua boca e o beijo gelado que veio logo depois era a imagem que eu colocava na frente da bagunça do apartamento que precisava ser arrumada; da discussão com o meu irmão; e com meu pai; do vizinho tocando violino às duas da madrugada; das provas finais de matérias das quais eu sequer sabia o nome direito. Paralisei o filme em qualquer cena dos momentos em que estivemos juntos e, embora a trilha sonora também estivesse congelada, pela primeira vez o silêncio era indiferente aos meus ouvidos. Bob Dylan não era mais necessário em um mundo onde havia sua voz e por meio dela você dizia coisas como 'adoro outonos; se eu estivesse no hemisfério norte, com certeza colecionaria aquelas folhas amarelas ou as bem avermelhadas  quando já perderam toda sua vitalidade e estão decrépitas, quase sem vida , como se isso não fosse mórbido e estranho em muitos níveis'. E eu ria.


| Créditos da foto: "Polaroid Week 2015 - Day 4" by August Kelm, licensed under CC BY 2.0

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dois

Há uma canção que não me canso de escutar. Foi ela que me indicou; entre uma conversa e outra, entre uma discussão sobre os anos 90 e as narrativas do fim de semana passado. Sinto as rachaduras no meu peito: há coisa lá dentro que, de tão frágil, não se segura – engano meu, mantêm-se unidos os pedaços graças ao calor humano; como é possível que a energia dela viaje tão longa distância para chegar até mim? Eu finalmente estou inspirado para alinhar aquele pensamento no papel: a ideia só surgiu por conta de algo que ela me falou – coisa sem importância, reflexão boba que martelou por horas em movimento repetitivo, até que me reacendeu o ímpeto de escrever. Depois que eu tiver meu rascunho, ela vai revisar; vai dar pitacos; vai me apontar um grave erro que cometi – como fui prepotente naquele trecho, que infelicidade! Agradeço e vou dar uma volta. Quando eu retornar, ela ainda estará lá (exceto após a badalada da meia-noite). Tem uma matéria interessantíssima e quer compartilhar comigo, saber o que eu acho. Eu tenho uma vida não tão interessante assim, que compartilho com ela, para saber o que ela acha. Ela acha que eu deveria ler mais; eu penso o mesmo sobre ela – embora reconheça sua vitória. Nós achamos que nós deveríamos viajar mais. (Olhe lá fora, o mundo está chamando pela gente!) Uma lágrima chega a percorrer o caminho todo até pingar. Não consigo distinguir de quem é; nem se é de tristeza ou de felicidade. Tanto faz. Vai passar, eu digo a ela; espero que sim, ela me diz. Quem conta as estrelas, não conta quanto já foi dito por nós; e quanto foi não dito, mas os dois entenderam. "Ainda preciso lhe contar uma coisa": é meu mantra diário. Pausa – e leio mais um trecho do livro que ela veementemente me indicou. Corto a madrugada e percebo que já amanhece. Olho ansioso para o relógio esperando o bom-dia que me desperta para mais uma fração da vida. Em dias chuvosos, sou seu guarda-chuva amarelo; e vice-versa. Já fomos tanto ao MacLaren's que fica difícil esquecer; e quantas vezes não rimos juntos? Risadas internas de piadas internas que ninguém ao redor é capaz de compreender. Porque ninguém é capaz de nos compreender tão bem. Você entende o que quero dizer? Claro, você sempre entende. Conte-me mais sobre sua sorte no jogo e eu respondo sobre meu azar no amor. Aliás, o que o seu horóscopo prevê para hoje? Palpite: acho que vamos querer estar mortos. Pensando bem, ainda não posso ir: preciso ser seu vizinho e bater na sua porta, te chamando para provar alguma receita que, inseguro, acabei de testar; se você fizer o mesmo, terei que reconhecer sua vitória aqui também. Seu maior prêmio, contudo, deveria advir da paciência de todos esses anos – os que vieram e os que virão – me suportando. Você é mesmo guerreira... posso te presentear? Desta vez, a lembrancinha é este texto aqui. E se existe algum erro nele, desculpe-me: mas é porque você não leu antes.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Brief

So that’s the guy. And he writes non-sense things that no one can reads, but him. He was shot, but he’s not dead – how’s that even possible? And he was laid down on the floor, then he stood up and said out loud a four-letter-word that made everyone around him laugh, because there’s no joke today more despicable than love. And the reason is that when you make fun of something you fear it less. That’s also why he needed to shout it and he urged that every single person listen to it: but they were deaf and they just knew laughing and mocking and acting like automats. In the afternoon, he burst into tears and his mourning was even louder than his yell, although it hasn’t being able to wake up the deep-sleepers, which was everybody. He claimed for God and asked in clear voice why do they have to suffer, why is their hearts turning into ashes, and God Himself didn’t answer, because He is not allowed to, but at this very moment a noisy and shiny thunder blared; the man heard it and understood: it was a choice of theirs. Only when the sky appeared to be blacker than bluer, the song of stars started to play, and at first, it was almost unlistenable, a long after it was the single sound that could be heard by all living beings. It was sad and blue and deeply melancholic, but the man felt peace inside him, though he failed to guess how was that possible. The man alone, the magician, the wanderer, the first one, he was alive, in a world of graves, and he wasn’t capable of remembering the taste of her kiss – but she, like everybody else, lied under grass and flowers and mementos. And so, with no mercy, he blacked-out his inside sun, once the stars’ lullaby have taken it all and he realized that it’d be so exhausting to live like this, without the warmth of her lips, without a soul to fill his skull. One more time, he shouted the word and each one of the four letters stabbed him – four places: forehead, throat, heart and navel. Silence. The angel beside him flew away. And that’s the end.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Par ou Ímpar

Ao 1 ano, eu não tinha certeza de nada.
Aos 3 anos, eu tinha certeza de que gostava dos meus pais e da minha irmã.
Aos 5 anos, eu tinha certeza de que meu avô iria deixar de ser uma estrela e eu poderia voltar a visita-lo aos domingos.
Aos 7 anos, eu tinha certeza de que poderia passar o dia inteiro brincando e comendo bolacha recheada que não enjoaria nunca.
Aos 9 anos, eu tinha certeza de que jamais encontraria pessoa mais chata e irritante que minha irmã.
Aos 11 anos, eu tinha certeza de que um dia seria um grande jogador de basquete.
Aos 13 anos, eu tinha certeza de que estava pronto para beijar a Karina.
Aos 15 anos, eu tinha certeza de que não teria utilidade decorar as fórmulas sobre geometria e que não faria mal matar umas aulas de vez em quando.
Aos 17 anos, eu tinha certeza de que namorar — antes dos 30, pelo menos  seria o maior erro que eu poderia cometer (ainda assim, não sei bem por quê, perguntei à Fernanda se ela queria errar junto comigo).
Aos 19 anos, eu tinha certeza de que os anos na universidade seriam os melhores da minha vida.
Aos 21 anos, eu tinha certeza de que se eu não parasse de beber tanto, não chegaria nem aos 25 (mas estava errado).
Aos 23 anos, eu tinha certeza de que não sabia o que fazer da vida dali pra frente.
Aos 25 anos, eu tinha certeza de que havia escolhido o curso errado.
Aos 27 anos, eu tinha certeza de que fazia a coisa certa ao noivar da Gabriela.
Aos 29 anos, eu tinha certeza de que eu não visitaria tantos países quanto tinha planejado na adolescência.
Aos 31 anos, eu tinha certeza de que aqueles votos proferidos perante um padre seriam eternos.
Aos 33 anos, eu tinha certeza de que jamais usaria os conhecimentos acumulados durante os quatro anos de graduação e que a maior contribuição da faculdade havia sido as horas no bar jogando conversa fora com os amigos.
Aos 35 anos, eu tinha certeza de que as discussões com minha esposa seriam passageiras, pois nada poderia abalar nossa convicção no amor de papel passado.
Aos 37 anos, eu tinha certeza de que aquela criança que ainda era gestada seria o maior presente da minha vida — e seria um grande jogador de basquete.
Aos 39 anos, eu tinha certeza de que minha filha seria a única boa contribuição que eu deixaria no mundo.
Aos 41 anos, eu tinha certeza de que deveria parar de fumar.
Aos 43 anos, eu tinha certeza de que minha esposa voltaria para mim, com nossa filha nos braços, e desistiria da ação de divórcio.
Aos 45 anos, eu tinha certeza de que minha ex-esposa jamais voltaria para mim.
Aos 47 anos, eu tinha certeza de que era o homem mais infeliz da face do planeta — o que é pior: ainda mais que meus pais — e que o suposto “Deus” não passava de um embuste afinal.
Aos 49 anos, eu tinha certeza de que minha filha se apegaria tanto ao padrasto, que logo eu não faria mais falta a ela, e ela então se esqueceria de me chamar pelo nome: “papai”.
Aos 51 anos, eu tinha certeza de que detestava trabalhar naquela mesma empresa há tantas décadas.
Aos 53 anos, eu tinha certeza de que aquela garota mais nova com quem eu me envolvera por impulso, tão cheia de ânimo e de vontades, não me daria de volta a felicidade que eu tanto aguardava.
Aos 55 anos, eu tinha certeza que estava tomando a decisão acertada ao pedir demissão.
Aos 57 anos, eu tinha certeza de que uma mulher tão bem-resolvida como a Karina não se envolveria com um homem grisalho e sisudo como eu, embora ela estivesse viúva.
Aos 59 anos, eu tinha certeza de que eu e Karina não nos separaríamos jamais e, se Deus permitisse, morreríamos juntos.
Aos 61 anos, eu tinha certeza de que adorava ser crítico gastronômico.
Aos 63 anos, eu tinha certeza de que estava vivendo a época mais serena e mais prazerosa de minha vida.
Aos 65 anos, eu tinha certeza de que aquele enfisema pulmonar poderia ser revertido e que eu ainda viveria por décadas.
Aos 67 anos, eu tinha certeza de que Karina nunca iria sair do meu lado, tampouco minha filha.
Aos 69 anos, eu tinha certeza da proximidade da minha morte, mas a esperava com inimaginável e sincera tranquilidade.
Aos 71 anos, eu não tinha certeza de mais nada — e nem precisava.


Este texto é dedicado à Karina, Fernanda e Gabriela, que agora estão cheias de incertezas, mas entendem que, se você não sabe exatamente aonde quer ir, não importa qual caminho irá tomar.

domingo, 5 de outubro de 2014

Resiliência

Ainda posso sentir quando o vento entra pelas frestas e desvia de onde você deveria estar.
Chega em mim com todo esse atrevimento e eu lhe explico que há tanto tempo que nem me lembro mais - o que minhas contagens mentais diárias desmentem - você já não se faz presente aqui.
Inconformada, como um dia estive eu, a brisa também me abandona, e eu entendo que junto com você se foi todo o sentido que fazia de mim uma boa companhia.
Caiu a noite no pequeno espaço em que me guardo todos os dias. Tenho medo é que nem o brilho do sol, que incomoda meu sono perene e me dá o estímulo para abrir os olhos, atreva-se a invadir um antro vazio.
Quando você soltou a mão das minhas para colocá-la na maçaneta e enfim partir, eu me lembro como se fosse ontem (e quando foi?) de haver-lhe dito fique, eu te farei bem. Você respondeu não, eu mesma me farei esse bem.
Achei ter visto lágrimas aquarelarem seu rosto nu, mas era minha própria visão que se turvara da tristeza que molhava minha face.
E na melancolia que se percebe em cada fio das teias que crescem nos vértices de cada cômodo sem que eu me importe, meu coração submergiu e, nas penúrias de minha própria comiseração, eu me fiz só - e me afoguei.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Mecânica Laranja

Quando eu o ouvi dizer aquilo da primeira vez, ele mal havia acabado de completar quatro anos.

- Mamãe, quero um aviãozinho laranja.

Eu estava realmente ocupada na cozinha, esforçando-me para lembrar se a caponata original do meu sogro levava pimentões, então respondi automaticamente: depois eu compro um para você. Contudo, quando o depois chegou, o assunto do avião laranja foi esquecido tanto por ele quanto por mim e eu acabei descobrindo que ter colocado os pimentões havia sido um grande erro: por causa disso, seu Gusmão, pai do meu marido, murmurou algo à mesa sobre minha falta de dotes culinários, meu marido interveio e acabaram tocando em chagas delicadas - como a opinião do meu sogro de que nós nunca deveríamos ter nos casado. Nunca entendi por que as pessoas simplesmente não aceitam deixar alguns segredos guardados na caixa de Pandora e levar eles consigo quando partirem, sem que ninguém nunca desconfie da verdade. Os dois homens brigaram e, durante os dois anos seguintes, não se falaram.

Dois anos depois daquela noite, em 1992, meu marido morreu. Não sem antes agonizar durante nove meses e insistir que aquele câncer não era nada, que ele ficaria bem. Como um câncer pode não ser nada? Se, ao final, ele ficou bem, foi o único. Naquela tarde, voltando do velório, no banco de trás do Passat prata da minha irmã, meu filho se virou para mim e sussurrou, quase em tom de súplica:

- Mãe, você pode me dar um aviãozinho laranja?

Eu não me recordo de ter gritado tanto com ele como naquele dia. Eu bradava cada palavra de repreensão com tanta força que parecia ser minha intenção que meu marido me ouvisse lá do alto e percebesse como foi irresponsável de sua parte ter nos abandonado. Estava desolada e não podia entender como uma criança que acaba de perder o pai tem cabeça para aviõezinhos, sejam laranjas, azuis, brancos ou cor de luto. Eu apenas não compreendia.

Alguns meses depois, quando a mera menção do nome do meu esposo não me fazia verter lágrimas mais, meu filho teve uma febre bastante alta e precisou ficar em repouso. A fim de trazer-lhe um pouco de alegria, saí pela cidade em busca do tal aviãozinho: não tive sucesso. Comprei um de vinte centímetros, pintado de vinho, e ele me retribuiu com um semissorriso. Era evidente que eu não lhe tinha satisfeito. A partir de então, sempre que ia ao centro (e sempre que me lembrava), caminhava perscrutando as vitrines das lojas de brinquedo, em busca de um modelo da cor do uniforme da seleção holandesa.

Certa feita, soube por acaso que um primo de terceiro grau viajaria para os Estados Unidos. Tive algum trabalho para conseguir seu telefone, mas acabei entrando e contato e pedindo que ele procurasse o brinquedo por lá. Meu pequeno já estava com sete anos e não mencionava mais o aviãozinho, no entanto eu sabia que o silêncio se tratava apenas de falta de esperança, não de falta de desejo. Eu achava que, no fundo, ele ainda queria tanto aquilo quanto quis ganhar um beijo da Carolina Bonfim na pré-adolescência. Para meu infortúnio, a bagagem do tal primo, na volta, foi farejada no aeroporto por cães bem treinados e encontraram 5kg de cocaína no meio de suas coisas - inclusive dentro da miniatura de avião laranja que estava acomodada entre as camisas e as meias. Os policiais obviamente levaram meu primo algemado e levaram junto todo o conteúdo da mala, que nunca mais foi visto por ninguém da família.

Em uma tentativa derradeira, quando meu filho completou doze anos, dei a ele um avião branco, mas que eu havia pintado de alaranjado com tinta acrílica. Ele logo percebeu a trapaça, entretanto não tenho dúvidas de que sua reação foi a mais genuína: ele riu, abraçou-me por um minuto inteiro e agradeceu como nunca antes (nem nunca depois). Porém bastou dois dias para que a cor descascasse e revelasse o branco sem-vida que era a verdade do brinquedo. Eu me ofereci para passar uma nova camada de tinta, mas ele disse que não precisava, que não importava.

Cinco meses e treze dias depois, ele me deixou. No segundo dia em que o deixei ir sozinho, a pé, para a escola (que ficava a sete quarteirões de casa), um carro estúpido e desgovernado o atingiu na calçada e o imprensou contra um portão de ferro. De suas costelas muitas se quebraram e algumas perfuraram órgãos vitais. Ele teve uma hemorragia. Em minutos, ele não tinha mais vida. Nem eu.

Eu não sei precisar quanto tempo demorei para me recuperar daquele dia, pois, francamente, ainda não me recuperei. Ainda existem aqueles dias em que acordo pensando em por que acordei, por que ainda estou viva, e o que mais eu preciso fazer para provar que já paguei por todos os meus pecados, mesmo pelos que não cometi.

Muito, muito tempo depois, minha irmã me convenceu a mudar daquela enorme residência, onde eu vivia sem ninguém; sem nem eu mesma. No processo da mudança, no revirar de gavetas, encontrei a embalagem vazia de um remédio que eu e meu marido dávamos todas as noites ao nosso filho quando bebê. Quando bem novo, ele teve uma maldita meningite e esteve à beira de perder a alma (como aconteceu menos de uma década depois). Naquela época, depois de uma longa estadia no hospital, pude trazer meu pequeno para casa, no entanto ainda éramos obrigados a administrar-lhe antibióticos e outros medicamentos de tarja preta. Decerto, não tinham um gosto bom, mas eram menos amargos que a doença e que o sofrimento; eram, em certa medida, a salvação, e ele sabia disso. Sabia que graças àquelas gotas conseguiu se recuperar e ter ânimo para prosseguir com a sua infância. Talvez eu e seu pai fossemos seus super-heróis, mas eram aqueles frasquinhos que guardavam a fonte de nossos poderes para sua cura.

Então, eu encontrei a embalagem de um dos remédios e, desenhado na caixa, havia um pequeno aviãozinho laranja sob um fundo de céu azul.

E eu apenas não compreendia.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Bem-te-vi

Sempre que eu voltava do trabalho, ela estava lá. Observando-me, com aqueles olhos que já tinham visto tanta coisa e há muito não eram mais inocentes. Eram sua arma, que ela mirava em mim do outro lado da rua, cinco dias na semana, poucos minutos depois das 18h. Eu nunca reparei. Se eu olhasse para trás, enquanto buscava a chave de casa no bolso, veria nada além de um colégio e dezenas de jovens rindo, conversando, paquerando, usando o celular e se despedindo enquanto entravam nos suntuosos carros dos seus pais. Mas aquele par de olhares escuros, que insistiam em me focalizar, estavam perdidos naquela multidão pouco interessante.

Ela tinha dezessete e eu, vinte; vinte e três para ela, pois no mínimo três anos me envelhecia a barba que cobria boa parte do meu rosto. Os amigos dela já faziam brincadeiras com sua obsessão, no entanto (talvez por serem poucas suas amizades) ela não dava importância a isso. Começaram a insistir para que ela viesse falar comigo, mas o que eu iria querer com uma menina sem graça como ela?, argumentava. Ela sabia que eu não tinha namorada mais, porque me viu no dia em que eu cheguei desanimado, caminhando sem ânimo de caminhar, movimentando-me apenas por inércia, aquele dia em que minha ex havia me telefonado no trabalho e acabado com tudo em pouco mais que três minutos; e ela, quando me viu, foi quando quis me dar um abraço e, enquanto me olhava e tentava criar coragem para ir me consolar, notou que meu anelar direito estava nu, porque naquele mesmo dia eu já havia aproveitado as lágrimas para que a aliança deslizasse mais fácil para fora do meu dedo. Mesmo assim, meses depoisela ainda ficava receosa. Porque talvez eu já havia voltado a namorar, apenas tinha decidido a não usar mais alianças; talvez eu tivesse decidido que não queria mais compromissos por um longo tempo; talvez... 

Eu vim a descobrir depois que a minha ex havia terminado comigo pelo motivo menos surpreendente de todos - havia se interessado por outro cara. Mas a minha observadora não. Ela continuava fiel a mim, com um deslumbramento adolescente que eu mesmo nunca ousei ter. Mesmo que, dia após dia, eu a ignorasse em absoluto - embora involuntariamente. Se eu soubesse, teria me questionado o que ela viu em mim; o que sustentou essa sua tão persistente atenção por meses a fio? É bem verdade que, geralmente aos sábados e às vezes às sextas (e raramente às quintas), ela ia a alguma boate descarregar toda a tensão comum da idade em algum garoto qualquer. Mas, assim que o fim de semana se punha no horizonte, e chegava a segunda-feira toda de mansinho, estava ela lá, no portão do colégio, um pouco depois das seis da tarde, a me esperar e a toda minha indiferença - que, para ela, era quase um atrativo. 

O dia em que ela chegou mais perto de me cumprimentar foi, bem me lembro, em um dia 5 de dezembro. O período escolar estava prestes a acabar e, aluna do 3º ano que era, logo ela iria para alguma universidade (no sul do país, como pretendia), e seu décimo-oitavo aniversário era no domingo próximo. O convite para a festa que daria em sua casa estava seguro em uma de suas mãos, já ela não estava tão segura assim. O que acima de tudo a motivou a atravessar a rua em minha direção foi, imagino, saber que aquela seria sua última chance de se fazer notar. Naquele dia 5, em especial, eu estava bastante aéreo: havia acabado de trocar algumas palavras com uma moça no ônibus e - nem eu esperava que isso fosse acontecer - ela havia me dado seu número de telefone (o verdadeiro, descobri mais tarde). Assim, enquanto buscava as chaves no meu bolso, eu provavelmente estava me decidindo se Miguel ou Lucas, qual o nome mais bonito para o nosso futuro filho - que teria as feições da mãe, mas não escaparia de herdar o meu nariz nada discreto.

Ela e eu estávamos na mesma calçada agora, o convite quase sendo amassado na mão tímida dela. Por alguma razão que ninguém explica, naquele instante eu olhei para trás e vi a bonita garota que, parada, distante apenas dois metros, retribuiu meu olhar por noventa e sete centésimos de segundo, e o desviou. Quando voltou a me buscar, eu sorri para ela e ela sorriu para mim. Ah, sim, tinha um sorriso deliciado, gracioso (que superava o da moça do ônibus, se me atrevo a comparar). 

E isso é tudo o que sei. Não sei seu nome, não sei sua idade ou o que era aquele papel que não deixava escapar da mão direita. Minha única pista de que ela estudava no colégio em frente era seu uniforme branco e azul. Foi a primeira vez que a vi, terá sido a primeira vez que me viu também? O interesse com que aqueles olhos quase pretos me observavam me intrigou. No entanto, tudo o que fiz foi destrancar a porta e ela tudo o que fez foi atravessar a rua de volta ao aglomerado de estudantes. Voltou para perto de seus dois amigos, que riam da amiga destemida, e contou: 

- Um dia, eu vou me casar com ele. Podem anotar.

Nunca mais a vi. Nunca nem descobri que o real marido dela guarda uma semelhança quase gêmea comigo. Mas ela, como sempre, deve ter me visto. Porque daqueles olhos, tenho certeza, não é possível escapar.