Dentre tantas coisas que não conseguia compreender, uma
delas era por que lhe haviam dado aquela incumbência. Considerava-a injusta,
contraditória e sua realização parecia impossível, até mesmo para alguém como
ele. Veja que seus feitos não eram poucos. Quanta inspiração ele já não havia
soprado, quantas primaveras não haviam sido possíveis apenas por conta de seu
toque de vida. Entretanto, agora estava lidando com algo ainda mais
incompreensível e não entendia a razão de precisarem daquilo. Não haviam homens
e mulheres vivido perfeitamente bem sem saber do amor até agora? Que súbita
necessidade era essa de dar forma a sentimentos tão ignotos, mesmo entre os
seres superiores? Por que tirar de Eros a exclusividade dos segredos daquela
arte tão sutil e excelsa?
Precisava no entanto admitir que, e qualquer um de seus
pares haveria de reconhecê-lo, ele era o melhor no ofício da formação. Dava
forma ao que quer que fosse: moldou os vários tipos de alegria; construiu os tristes
muros que separam cada pessoa de seus semelhantes; aperfeiçoou a melancolia,
antes tão seca; e, em um esforço digno de grande mérito, mostrou ao mundo sua
versão da saudade, que logo foi adotada por todos.
Agora... o amor?
Amor, aquele rompante incendiário que aquieta qualquer chama
descontrolada? Aquele que aquece como o verão, desabrocha como a primavera,
acolhe como o outono e sossega como o inverno? O amor que é luz, mas nunca é
visto, pois tão intenso é seu brilho que ninguém consegue divisar suas fronteiras,
fazendo com que ele se confunda com o próprio espaço em que se imergem tudo e
todos? O mesmo amor que guia cada ato de bondade e justiça a troco de ser mal
compreendido e confundido com todos os outros sentimentos existentes? Como se
amor fosse um sentimento; como se o amor brotasse em cada coração de forma individual
e não fosse o ritmo de cada batida e a sincronia entre todos os corações
pulsantes. Como se o amor não fosse o fôlego que ele mesmo tira dos apaixonados
e distribui entre cada ser prestes a receber o sopro da vida. Amor, aquele que
antecede à própria vida e se confunde com o ato de criação. E, no entanto,
haviam colocado sob sua responsabilidade conceber o que concebe.
Estava tendo um sério bloqueio. Andava para lá e para cá,
observava de longe a interação dos casais, interceptava e sem pedir permissão
lia (mais por deleite do que por outra coisa) várias das cartas trocadas entre
amantes, anotava tantas juras de paixão quanto pudesse testemunhar, desde as
mais sucintas até as mais emocionadas. Chegou a recolher lágrimas tímidas de
noivos quando viam a noiva na porta, prestes a caminhar sua vida até ele; e as
lágrimas aliviadas das noivas quando o sim era recíproco. Entendeu que tentar
compreendê-lo seria rir de si mesmo. Muitos artistas tentavam e acreditavam ter
grande sucesso na empreitada, mesmo que o amor capturado pelos seus pincéis e
canetas-tinteiro fosse uma única faceta de algo com infinitas faces.
O que mais o indignou, porém, provavelmente foi escutar de
pobres desamados que o amor fere; dói; trai o corpo e a alma. Que ingenuidade!
Como poderiam tomar aquilo por amor? Como não se distingue a pureza e a beleza
de um diamante do corte que advém de suas pontas lapidadas caso seja manuseado
indevidamente? Indignado, pôs-se a trabalhar com ainda mais afinco, pois
decidiu que era hora de o mundo conhecer o que o amor significava de fato. Se
eles compreenderiam, não sabia dizer, até apostava que não, mas a obra
isentaria o artista de quaisquer explicações.
Tinha em frente a si um espaço em branco. Preencheu-o logo
com cores, todas elas, tomando o cuidado de deixar um espaço vazio, para
sinalizar que sempre haverá algum lugar para onde ele ainda resta crescer.
Formou com elas a forma perfeita – uma esfera –, mas por ser composta de todas
as outras formas, tinha também arestas, porque assim deve ser. Fê-la do maior
tamanho que conseguiu com seus materiais, tomando cuidado para que ela coubesse
no menor dos átomos do menor dos seres vivos, pois em nenhuma célula deveria
haver falta de amor. Seu primeiro modelo foram os lábios, mas percebeu logo que
era nos olhares que deveria buscar sua inspiração; entretanto, acabou
confessando ter usado também as mãos entrelaçadas, os narizes se tocando, os
pés se esquentando e o corpo todo quando se molda em um abraço.
Para a finalização da peça, a fim de que ela ficasse
irretocável, consultou Diotima de Mantinea e a sacerdotisa ensinou-lhe, como
havia ensinado antes a Sócrates, sobre as escaladas do amor. Consultou ainda a
São Valentim, que lhe contou segredos nunca antes verbalizados sobre o matrimônio
e por que, na vida a dois, os silêncios são mais importantes do que aquilo que se
diz um para outro. Contudo, nada talvez tenha o surpreendido mais do que o real
simbolismo por trás da troca de alianças... Tudo isso foi material para que o
esculpir fosse se moldando na forma última.
Quando deu por terminado, ficou todo orgulhoso – como talvez
fosse de se esperar – e sentiu o ímpeto de exibir sua recriação. Por vaidade, procurou
logo o Cupido, certo de que ele, autoridade no assunto, aprovaria seu trabalho.
O ser divinal, no entanto, após elogiar seu esforço, declarou que estava
incompleto. Ora, o que faltava? Em resposta, o Cupido o pegou pela mão e o
levou para observar um casal que ele havia flechado tempos atrás.
Eles estavam, ainda, se conhecendo. Era a beleza da
descoberta que estavam presenciando. Às vezes, era por meio das conversas: as
mais aleatórias possíveis e todas as vezes seguindo rumos inesperados, sem
pressa alguma de chegar a algum lugar. Outras, era através de uma cumplicidade
muda, pois nem sempre palavras precisam ser gastas. Muitas vezes era com a
ajuda dos gestos, do tato, do toque, da sensibilidade. As mais impressionantes
eram pelo olhar; bastava eles se cruzarem, a conexão era imediata e a mais
sincera de todas, já que os olhos não conseguem mentir. Mas a descoberta também
se dava pelos perdões e pelo agradecimento. “Preciso ir”. “Por favor, fique”.
“...Fico”.
Cupido perguntou se ele compreendera e ele respondeu que sim,
pois verdadeiramente havia entendido sua falha.
Questionou a si mesmo se haveria um jeito de consertá-la, porém
sabia que não. Essa sua tarefa estava – como esteve desde o princípio – fadada à
incompletude, à imperfeição. Mesmo assim, ele conseguia sentir paz. Percebeu enfim
que mesmo o maior dos artistas era menor que o que estava por trás daquelas
poucas letrinhas. Em português, apenas quatro. Uma constelação de só quatro
grandiosas estrelas e outras milhares menores, invisíveis a olho nu. E um
brilho visto do outro lado do universo.
O jeito era torcer para que cada um dos seres fosse capaz de usar essa força com sabedoria. Quando, sem remorsos, decidiu destruir sua obra inacabada, fez isso despedaçando-a em milhões e milhões de pequenos pedaços, que a boa brisa acabou por carregar. Carregou através do tempo e do espaço e foi levando aqueles invisíveis fragmentos. Até hoje, dizem, ainda é possível encontrar alguns por aí, mas – um detalhe – eles só são vistos no contraste com algo muito único: a visão da pessoa amada.
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