sexta-feira, 8 de maio de 2020

Casulo

Percebi que tinha algo errado quando comecei a trocar o dia pela noite. Minha rotina de almoçar tarde já vinha desde os tempos da agência, porém agora o almoço havia tomado o lugar da ceia: eu degustava um macarrão com molho caseiro observando o cair do sol. Por volta de meia-noite, eu ia preparar minha janta, que me sustentaria noite afora. Elaborava os mais requintados pratos que conseguia, tomando cuidado para não fazer muito barulho e perturbar os vizinhos que já dormiam. Ou talvez não dormissem, como eu, que jamais tivera um sono de qualidade desde que isso começou. No entanto, dia após dia, insistia em colocar a cabeça no travesseiro e tentar pregar os olhos. Para atrapalhar, ainda precisava lidar com a luz que ignorava as cortinas e inundava o quarto. A essas horas, em tempos menos catastróficos, eu estaria na minha segunda ou terceira xícara de café, chegando ao auge do meu estado de vitalidade laboral.

Depois de duas semanas, usei alguns sacos de lixo e outros remendos para cobrir os vidros e poder dar ao meu corpo as condições de repousar, uma compensação por ter bagunçado todo o meu relógio biológico. Não adiantou, mas pelo menos agora eu tinha um canto escuro no aparamento, um ambiente mais propício para refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Eu poderia até fazer isso durante a noite ou de madrugada, mas estes eram meus novos horários preferidos para cumprir com todas as minhas obrigações diárias, com a empresa e com minha própria casa. Nada mais favorável para a concentração e a produtividade do que trabalhar sob o silêncio noturno. Quando amanhecia e o movimento dava sinais de despertar, era minha deixa para me recolher à escuridão artificial do meu quarto.

Em alguns dias, a fraca claridade que ainda conseguia espreitar pela janela passou a me incomodar e eu fui obrigado a pregar dois cobertores por cima para barrar qualquer feixe mais atrevido; executei esse projeto com tanto esmero que já nem sabia como faria para retirar todas as camadas de bloqueio e abrir a janela novamente. Não havia problema: a esperança de que eu precisasse abri-la para observar algo lá fora parecia muito, muito distante. Mais mórbidas que as trevas que me embalavam eram as que me consumiam por dentro. Às vezes eu pensava haver me esvaziado, contudo quando eu investigava mais a fundo, descobria que estava preenchido por essa desilusão e amargura.

Se espiava pela janela e via as ruas todas desertas, me desesperava. Agora, se – o que acontecia com mais frequência – vislumbrava pessoas a caminhar ou carros zanzando para lá e para cá, minha reação era muito pior. Crescia dentro de mim um ódio, eu não sabia exatamente de quê ou de quem, só sabia que me espetava. E que aquele sentimento, de mãos dadas com a angústia que não me largava, retorcia todos os meus órgãos e me sufocava pelo menos uma vez por dia.

Achei melhor não olhar mais. Ao menos, não para baixo. Olhava apenas reto, pois no prédio em frente havia ela. Ela que também estava confinada, embora eu desconfiasse que fosse ao mercado ao menos uma vez por semana. Eu sei que nem todos fizeram como eu e estocaram alimentos suficientes para meses, no entanto eu ainda a alertava para só sair de casa quando já não houvesse um único pão com molho de tomate para fazer as vezes de uma refeição. Ah, mas ela não queria ficar sem o pão brioche dela... E as verduras sempre frescas... Não, ela não me contou, mas eu sei. Nossa comunicação ficou um tanto prejudicada depois que meu celular caiu na pia – enquanto eu tentava assistir a uma live e lavar a louça – e não quis mais ligar. Desde então, eu não tenho notícias de mais ninguém. E certamente não me arriscarei no cenário apocalíptico em busca de alguém que o conserte: nem sei mais onde deixei as chaves da porta da frente. Voltei àquela era esquecida em que, para saber de alguém, era preciso visitá-lo. Não vi nisso problemas; meus pais eram os únicos que poderiam depender de mim de alguma forma e, da última vez em que nos falamos, eles estavam muito bem. Melhores do que eu inclusive, já que lá naquela casa de campo ninguém chega; e, de todo modo, como eu poderia contribuir com alguma coisa estando em outro estado?

Chateou-me, contudo, não poder mais jogar conversa fora com ela. Muitas vezes eu trocava as manhãs de sono por uma ou duas horas de falatório com aquela mulher de olhos brilhantes e sotaque engraçado. Agora, só um aceno da janela. Era tudo. De algum jeito conseguimos combinar o horário e sempre que dava cinco horas da tarde, estávamos os dois nas suas respectivas janelas, sacudindo as mãos, mandando beijos, simulando os abraços que retribuiríamos quando tudo isso acabasse – e eu aproveitava para exibir minhas novas obras culinárias. Alguns dias ela se esquecia, mas eu não achava ruim; também não a cobraria quando um dia voltássemos a estar cara a cara. Entendo que às vezes, em tempos como esses, tempo é um conceito confuso e fugidio.

Estranho, realmente, foi quando ela deixou de aparecer três dias seguidos. E então no quarto, quinto, sexto. Uma semana e eu já amargava mais essa desilusão, pronta para ser arquivada com as outras. Talvez, contra todos os meus princípios, eu pudesse ter entrado em alguma rede social e enviado mensagens de interrogação, no entanto eu não queria achar que estava desesperado a esse ponto. Eu tentava com certa insistência recuperar meu celular, em vão. A tela preta era tudo o que ele tinha a me oferecer; além de quase que uma sombra do meu próprio reflexo. Não era o suficiente. Eu precisava dela. Das suas palavras, duras ou não. Da sua voz. Do seu sotaque. O seu afago também fazia falta, mas eu sentia que poderia pacientemente esperar por ele.

Alguns dias depois, estava deitado em meu sofá, tentado a ligar a televisão – o que não acontecia há mais de um mês –, quando pensei ter avistado alguém na janela dela. Seria ela enfim? Estava longe das cinco horas, mas a essa altura quem ainda olha no relógio? Levantei-me para observar mais de perto, porém logo o vulto desapareceu e não retornou pela próxima meia hora, até eu desistir da tocaia. Não saia da minha mente, todavia, que a figura parecia ser masculina. Mesmo eu só tendo visto-o de relance, na minha memória o contorno, a roupa e o andar pertenciam a um homem, o que era curioso, já que ela morava com a tia apenas.

Estranho. Naquele mesmo dia, pulei alguma refeição, porque passei horas buscando material dentro da minha própria casa para fazer naquela janela o que já havia feito no meu quarto. Já não havia mais o que ver. O barulho do trânsito me dizia que o fluxo de pessoas ainda não cessara, todavia não havia nada que eu pudesse fazer para abafar o som. Entretanto, eu podia, sim, colaborar para que eu não caísse na tentação de espiar a vida na cidade, que decerto estaria debilitada em poucos dias.

Cobri tudo. Todos os vidros. Bati pregos, sem me preocupar com os furos, nem com o trabalho que teria, no final, para reverter tudo aquilo. Estraguei roupas de cama, arrastei móveis, tudo enquanto sussurrava a mim mesmo do futuro que não se preocupasse, era para o nosso próprio bem. Quando isso tudo passar, pensei, descobrirei cada uma das janelas com o prazer de quem está prestes a enxergar o colorido da vida pela primeira vez. Haverá movimento em todo lugar e isso, em vez de rancor, me trará alegria como nunca antes. Mas, por agora, não preciso de nada disso. Também não preciso de notícias ou tragédias em tempo real. Nem dos meus amigos e familiares, nem mesmo do mundo.

Eu tinha meu próprio mundo e nele me fechei. Ele era escuro, iluminado apenas artificialmente, mas era livre de vírus. Na verdade, era livre também de qualquer expressão de otimismo ou vontade. No começo, pareceu-me uma troca justa. Alguns meses depois, eu estava cansado demais para decidir sobre o valor de qualquer coisa. O barulho lá embaixo havia se intensificado, eu só não sabia se era fruto de uma crescente inconsequência das pessoas ou se, de fato, a cidade estava esterilizada. Na dúvida, não arrisquei. Tinha certeza de que, quando isso tudo acabasse, alguém bateria na minha porta para me avisar que era seguro sair. Talvez seria ela a bater. Viria até mim com saco de pipocas para estourarmos no meu micro-ondas e assistirmos a um filme francês. Como nos velhos tempos.

E o que normal já foi um dia, normal de novo seria.

Até lá, só me resta aguardar.

Em silêncio.