terça-feira, 5 de novembro de 2013

Bem-te-vi

Sempre que eu voltava do trabalho, ela estava lá. Observando-me, com aqueles olhos que já tinham visto tanta coisa e há muito não eram mais inocentes. Eram sua arma, que ela mirava em mim do outro lado da rua, cinco dias na semana, poucos minutos depois das 18h. Eu nunca reparei. Se eu olhasse para trás, enquanto buscava a chave de casa no bolso, veria nada além de um colégio e dezenas de jovens rindo, conversando, paquerando, usando o celular e se despedindo enquanto entravam nos suntuosos carros dos seus pais. Mas aquele par de olhares escuros, que insistiam em me focalizar, estavam perdidos naquela multidão pouco interessante.

Ela tinha dezessete e eu, vinte; vinte e três para ela, pois no mínimo três anos me envelhecia a barba que cobria boa parte do meu rosto. Os amigos dela já faziam brincadeiras com sua obsessão, no entanto (talvez por serem poucas suas amizades) ela não dava importância a isso. Começaram a insistir para que ela viesse falar comigo, mas o que eu iria querer com uma menina sem graça como ela?, argumentava. Ela sabia que eu não tinha namorada mais, porque me viu no dia em que eu cheguei desanimado, caminhando sem ânimo de caminhar, movimentando-me apenas por inércia, aquele dia em que minha ex havia me telefonado no trabalho e acabado com tudo em pouco mais que três minutos; e ela, quando me viu, foi quando quis me dar um abraço e, enquanto me olhava e tentava criar coragem para ir me consolar, notou que meu anelar direito estava nu, porque naquele mesmo dia eu já havia aproveitado as lágrimas para que a aliança deslizasse mais fácil para fora do meu dedo. Mesmo assim, meses depoisela ainda ficava receosa. Porque talvez eu já havia voltado a namorar, apenas tinha decidido a não usar mais alianças; talvez eu tivesse decidido que não queria mais compromissos por um longo tempo; talvez... 

Eu vim a descobrir depois que a minha ex havia terminado comigo pelo motivo menos surpreendente de todos - havia se interessado por outro cara. Mas a minha observadora não. Ela continuava fiel a mim, com um deslumbramento adolescente que eu mesmo nunca ousei ter. Mesmo que, dia após dia, eu a ignorasse em absoluto - embora involuntariamente. Se eu soubesse, teria me questionado o que ela viu em mim; o que sustentou essa sua tão persistente atenção por meses a fio? É bem verdade que, geralmente aos sábados e às vezes às sextas (e raramente às quintas), ela ia a alguma boate descarregar toda a tensão comum da idade em algum garoto qualquer. Mas, assim que o fim de semana se punha no horizonte, e chegava a segunda-feira toda de mansinho, estava ela lá, no portão do colégio, um pouco depois das seis da tarde, a me esperar e a toda minha indiferença - que, para ela, era quase um atrativo. 

O dia em que ela chegou mais perto de me cumprimentar foi, bem me lembro, em um dia 5 de dezembro. O período escolar estava prestes a acabar e, aluna do 3º ano que era, logo ela iria para alguma universidade (no sul do país, como pretendia), e seu décimo-oitavo aniversário era no domingo próximo. O convite para a festa que daria em sua casa estava seguro em uma de suas mãos, já ela não estava tão segura assim. O que acima de tudo a motivou a atravessar a rua em minha direção foi, imagino, saber que aquela seria sua última chance de se fazer notar. Naquele dia 5, em especial, eu estava bastante aéreo: havia acabado de trocar algumas palavras com uma moça no ônibus e - nem eu esperava que isso fosse acontecer - ela havia me dado seu número de telefone (o verdadeiro, descobri mais tarde). Assim, enquanto buscava as chaves no meu bolso, eu provavelmente estava me decidindo se Miguel ou Lucas, qual o nome mais bonito para o nosso futuro filho - que teria as feições da mãe, mas não escaparia de herdar o meu nariz nada discreto.

Ela e eu estávamos na mesma calçada agora, o convite quase sendo amassado na mão tímida dela. Por alguma razão que ninguém explica, naquele instante eu olhei para trás e vi a bonita garota que, parada, distante apenas dois metros, retribuiu meu olhar por noventa e sete centésimos de segundo, e o desviou. Quando voltou a me buscar, eu sorri para ela e ela sorriu para mim. Ah, sim, tinha um sorriso deliciado, gracioso (que superava o da moça do ônibus, se me atrevo a comparar). 

E isso é tudo o que sei. Não sei seu nome, não sei sua idade ou o que era aquele papel que não deixava escapar da mão direita. Minha única pista de que ela estudava no colégio em frente era seu uniforme branco e azul. Foi a primeira vez que a vi, terá sido a primeira vez que me viu também? O interesse com que aqueles olhos quase pretos me observavam me intrigou. No entanto, tudo o que fiz foi destrancar a porta e ela tudo o que fez foi atravessar a rua de volta ao aglomerado de estudantes. Voltou para perto de seus dois amigos, que riam da amiga destemida, e contou: 

- Um dia, eu vou me casar com ele. Podem anotar.

Nunca mais a vi. Nunca nem descobri que o real marido dela guarda uma semelhança quase gêmea comigo. Mas ela, como sempre, deve ter me visto. Porque daqueles olhos, tenho certeza, não é possível escapar.

4 comentários:

  1. Só porque seu blog tem o nome de "ad infinito" não significa que você pode abandoná-lo não, tá? haha Sério, você volta com um texto fenomenal como esse... não tem como eu não querer que você escreva mais e mais!

    ResponderExcluir
  2. É natural. Quase todo mundo tem isso. Às vezes é nas escolas, nos transportes públicos, ou em qualquer lugar que você costuma ir. Você olha, a pessoa olha de volta, você imagina mil coisas e então, no fim das contas, você nunca descobre se aquela pessoa poderia ter sido o amor da sua vida...

    Simples, gostei do texto.
    Boa noite,

    ResponderExcluir
  3. Adônis, incrível o teu blog. Me identifiquei imensamente. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Que texto delicioso! Tô aqui suspirando e dizendo "awn" pro narrador, hahaha. E essas paixões que acontecem pelo olhar, ai ai

    ResponderExcluir