Depois de duas semanas, usei alguns sacos de lixo e outros
remendos para cobrir os vidros e poder dar ao meu corpo as condições de
repousar, uma compensação por ter bagunçado todo o meu relógio biológico. Não
adiantou, mas pelo menos agora eu tinha um canto escuro no aparamento, um
ambiente mais propício para refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Eu
poderia até fazer isso durante a noite ou de madrugada, mas estes eram meus
novos horários preferidos para cumprir com todas as minhas obrigações diárias,
com a empresa e com minha própria casa. Nada mais favorável para a concentração
e a produtividade do que trabalhar sob o silêncio noturno. Quando amanhecia e o
movimento dava sinais de despertar, era minha deixa para me recolher à
escuridão artificial do meu quarto.
Em alguns dias, a fraca claridade que ainda conseguia
espreitar pela janela passou a me incomodar e eu fui obrigado a pregar dois
cobertores por cima para barrar qualquer feixe mais atrevido; executei esse
projeto com tanto esmero que já nem sabia como faria para retirar todas as
camadas de bloqueio e abrir a janela novamente. Não havia problema: a esperança
de que eu precisasse abri-la para observar algo lá fora parecia muito, muito distante.
Mais mórbidas que as trevas que me embalavam eram as que me consumiam por
dentro. Às vezes eu pensava haver me esvaziado, contudo quando eu investigava
mais a fundo, descobria que estava preenchido por essa desilusão e amargura.
Se espiava pela janela e via as ruas todas desertas, me
desesperava. Agora, se – o que acontecia com mais frequência – vislumbrava
pessoas a caminhar ou carros zanzando para lá e para cá, minha reação era muito
pior. Crescia dentro de mim um ódio, eu não sabia exatamente de quê ou de quem,
só sabia que me espetava. E que aquele sentimento, de mãos dadas com a angústia
que não me largava, retorcia todos os meus órgãos e me sufocava pelo menos uma
vez por dia.
Achei melhor não olhar mais. Ao menos, não para
baixo. Olhava apenas reto, pois no prédio em frente havia ela. Ela
que também estava confinada, embora eu desconfiasse que fosse ao mercado ao
menos uma vez por semana. Eu sei que nem todos fizeram como eu e estocaram
alimentos suficientes para meses, no entanto eu ainda a alertava para só sair de
casa quando já não houvesse um único pão com molho de tomate para fazer as
vezes de uma refeição. Ah, mas ela não queria ficar sem o pão brioche
dela... E as verduras sempre frescas... Não, ela não me contou, mas eu
sei. Nossa comunicação ficou um tanto prejudicada depois que meu celular caiu
na pia – enquanto eu tentava assistir a uma live e lavar a louça – e não
quis mais ligar. Desde então, eu não tenho notícias de mais ninguém. E
certamente não me arriscarei no cenário apocalíptico em busca de alguém que o
conserte: nem sei mais onde deixei as chaves da porta da frente. Voltei àquela
era esquecida em que, para saber de alguém, era preciso visitá-lo. Não vi nisso
problemas; meus pais eram os únicos que poderiam depender de mim de alguma
forma e, da última vez em que nos falamos, eles estavam muito bem. Melhores do
que eu inclusive, já que lá naquela casa de campo ninguém chega; e, de todo
modo, como eu poderia contribuir com alguma coisa estando em outro estado?
Chateou-me, contudo, não poder mais jogar conversa fora com ela.
Muitas vezes eu trocava as manhãs de sono por uma ou duas horas de falatório
com aquela mulher de olhos brilhantes e sotaque engraçado. Agora, só um aceno
da janela. Era tudo. De algum jeito conseguimos combinar o horário e sempre que
dava cinco horas da tarde, estávamos os dois nas suas respectivas janelas,
sacudindo as mãos, mandando beijos, simulando os abraços que retribuiríamos
quando tudo isso acabasse – e eu aproveitava para exibir minhas novas obras
culinárias. Alguns dias ela se esquecia, mas eu não achava ruim; também
não a cobraria quando um dia voltássemos a estar cara a cara. Entendo que às
vezes, em tempos como esses, tempo é um conceito confuso e fugidio.
Estranho, realmente, foi quando ela deixou de aparecer três
dias seguidos. E então no quarto, quinto, sexto. Uma semana e eu já amargava
mais essa desilusão, pronta para ser arquivada com as outras. Talvez, contra
todos os meus princípios, eu pudesse ter entrado em alguma rede social e
enviado mensagens de interrogação, no entanto eu não queria achar que estava
desesperado a esse ponto. Eu tentava com certa insistência recuperar meu
celular, em vão. A tela preta era tudo o que ele tinha a me oferecer; além de
quase que uma sombra do meu próprio reflexo. Não era o suficiente. Eu precisava
dela. Das suas palavras, duras ou não. Da sua voz. Do seu sotaque. O seu
afago também fazia falta, mas eu sentia que poderia pacientemente esperar por
ele.
Alguns dias depois, estava deitado em meu sofá, tentado a
ligar a televisão – o que não acontecia há mais de um mês –, quando pensei ter
avistado alguém na janela dela. Seria ela enfim? Estava longe das cinco
horas, mas a essa altura quem ainda olha no relógio? Levantei-me para observar
mais de perto, porém logo o vulto desapareceu e não retornou pela próxima meia
hora, até eu desistir da tocaia. Não saia da minha mente, todavia, que a figura
parecia ser masculina. Mesmo eu só tendo visto-o de relance, na minha memória o
contorno, a roupa e o andar pertenciam a um homem, o que era curioso, já que ela
morava com a tia apenas.
Estranho. Naquele mesmo dia, pulei alguma refeição, porque
passei horas buscando material dentro da minha própria casa para fazer naquela
janela o que já havia feito no meu quarto. Já não havia mais o que ver. O
barulho do trânsito me dizia que o fluxo de pessoas ainda não cessara, todavia
não havia nada que eu pudesse fazer para abafar o som. Entretanto, eu podia,
sim, colaborar para que eu não caísse na tentação de espiar a vida na cidade,
que decerto estaria debilitada em poucos dias.
Cobri tudo. Todos os vidros. Bati pregos, sem me preocupar
com os furos, nem com o trabalho que teria, no final, para reverter tudo
aquilo. Estraguei roupas de cama, arrastei móveis, tudo enquanto sussurrava a
mim mesmo do futuro que não se preocupasse, era para o nosso próprio bem.
Quando isso tudo passar, pensei, descobrirei cada uma das janelas com o prazer
de quem está prestes a enxergar o colorido da vida pela primeira vez. Haverá
movimento em todo lugar e isso, em vez de rancor, me trará alegria como nunca
antes. Mas, por agora, não preciso de nada disso. Também não preciso de
notícias ou tragédias em tempo real. Nem dos meus amigos e familiares, nem
mesmo do mundo.
Eu tinha meu próprio mundo e nele me fechei. Ele era escuro,
iluminado apenas artificialmente, mas era livre de vírus. Na verdade, era livre
também de qualquer expressão de otimismo ou vontade. No começo, pareceu-me uma
troca justa. Alguns meses depois, eu estava cansado demais para decidir sobre o
valor de qualquer coisa. O barulho lá embaixo havia se intensificado, eu só não
sabia se era fruto de uma crescente inconsequência das pessoas ou se, de fato,
a cidade estava esterilizada. Na dúvida, não arrisquei. Tinha certeza de que,
quando isso tudo acabasse, alguém bateria na minha porta para me avisar que era
seguro sair. Talvez seria ela a bater. Viria até mim com saco de pipocas
para estourarmos no meu micro-ondas e assistirmos a um filme francês. Como nos
velhos tempos.
E o que normal já foi um dia, normal de novo seria.
Até lá, só me resta aguardar.
Em silêncio.
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