sábado, 28 de julho de 2012

Entre o Verde e o Azul: uma resenha de "A Culpa é das Estrelas", de John Green

          O título, retirado de um trecho da obra “Júlio César” de Shakespeare (“The fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves”), não dá muitas pistas sobre o enredo. “A Culpa é das Estrelas” (The Fault In Our Stars, no original), na verdade, trata sim sobre culpa, mas de uma forma bastante inesperada. Quem protagoniza esse livro tão divertido e tocante é Hazel Grace Lancaster, uma menina de 16 anos com câncer terminal. É ela quem narra em 1ª pessoa e divide com o leitor, por exemplo, suas inquietações; observações mordazes sobre o comportamento das pessoas de seu convívio; e as dificuldades de praticamente não conseguir respirar sem um cilindro de oxigênio, que carrega aonde quer que vá.

“Faltando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida, minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saia de casa passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre pensando na morte. Sempre que você lê um folheto, uma página da Internet ou sei lá o que mais sobre câncer, a depressão aparece na lista dos efeitos colaterais. Só que, na verdade, ela não é um efeito colateral do câncer. É um efeito colateral de se estar morrendo. (O câncer também é um efeito colateral de se estar morrendo. Quase tudo é, na verdade.)”
  
          Hazel tem pais bastante protetores – sua mãe dedica-se quase que exclusivamente à filha e seu pai chora com frequência – e é notavelmente intensa, esperta e psicologicamente forte, mas sem deixar de ser amável. A primeira surpresa aqui é que o escritor, John Green, é um homem de 34 anos (e que não tem filhas, apenas um filho) que consegue com muita habilidade e destreza escrever todo um livro do ponto de vista de uma garota adolescente. Não que muitos autores não tenham sido bem sucedidos em fazer isso antes, mas eu, como escritor, acho fundamental reconhecer esse mérito: é um enorme desafio para um homem assumir um eu-lírico feminino, ainda mais feminino e jovem. Outra observação que faço é sobre o nome da protagonista: o autor disse que escolheu “Hazel” – que em inglês designa a (linda) cor de olho que é um meio-termo entre azul e verde –, pois a personalidade dela também é um meio-termo.

“(...)me ocorreu que a ambição voraz dos seres humanos nunca é saciada pelos sonhos que se tornam realidade, porque sempre persiste o pensamento que tudo pode ser feito melhor e de novo.
Isso provavelmente é verdade mesmo para quem chega aos noventa - embora eu tenha inveja das pessoas que vão chegar lá para descobrir por si mesmas.”
[tradução livre]
  
          Em um Grupo de Apoio para crianças com câncer, Hazel conhece Augustus Waters, um ano mais velho. Ela descreve Augustus como muito bonito e atraente; ele teve osteossarcoma quando mais novo e, por conta disso, amputou a perna direita – utilizando, agora, uma prótese no lugar. Hazel vai descobrindo aos poucos que o garoto também tem uma verdadeira fascinação por metáforas, o que torna muitas de suas reflexões realmente interessantes. A primeira conversa entre os dois é pontuada por um diálogo sarcástico, peculiaridade que está presente quase sempre que os dois se falam. Ainda que já tenha visto isso em outros livros, ainda acho um pouco inverossímil jovens sempre com diálogos tão elaborados e perspicazes, mas isso não é realmente uma crítica: é esse sarcasmo que muitas vezes dá o tom divertido do livro e ainda evidencia a grande afinidade e intimidade que logo surge entre os dois (a exemplo de Emma e Dexter em “Um Dia”, de David Nicholls).

— Meu livro favorito é provavelmente Uma Aflição Imperial – eu disse.
— Tem zumbis nele? – ele perguntou.
— Não.
Stormtroopers?
Eu balancei a cabeça em negação.
— Não é do tipo que eu gosto. – Ele sorriu. – Mas eu vou ler esse livro terrível com um título chato e que não tem stormtroopers.
[tradução livre] 

          Aproveitando a deixa, provavelmente inspirado por este post da Fran, eu me atrevo a comparar que Hazel e Augustus, em questão de maturidade, se encontram entre Emma e Dexter – que começam a história com 22 anos – e Liesel e Rudy (do também excelente “A Menina Que Roubava Livros”, de Markus Zusak) – que ainda preservam a inocência dos 10/11 anos. Hazel Grace e Augustus Waters rapidamente se tornam bons amigos e é essencialmente em torno dessa grande amizade que o livro é construído. É muito bonita a afeição que um tem pelo outro, sendo natural que o próprio leitor acabe se afeiçoando a ambos. Quando eles estão juntos, compartilham reflexões fascinantes – algumas vezes sobre suas doenças, mas nem sempre.

“Você nunca se preocupa em saber se ela é mais esperta do que você: você sabe que ela é. Ela é engraçada sem precisar ser maldosa.”
(Augustus sobre Hazel)
[tradução livre]
  
         O que aproxima a obra da nossa realidade são algumas peculiaridades como a menção ao programa  Americas Next Top Model  e à uma rede social similar ao Facebook. Em um dado momento, por exemplo, Hazel espiona o “mural virtual” de uma jovem garota que havia falecido de câncer e fica um pouco perturbada com algumas mensagens de condolências que encontra.

Era um número sem fim de pessoas que sentiam a falta dela. Eram tantas, que eu levei uma hora no mural descendo a barra de rolagem para passar das mensagens de “Sinto muito que você está morta” para “Estou rezando por você”.
[tradução livre]

         Outro aspecto muito interessante é que uma parte da história se desenvolve a partir do livro favorito de Hazel, “Uma Aflição Imperial”, escrito por Peter Van Houten, e cuja protagonista e narradora, Anna, também tem câncer – havendo, inclusive, uma citação dessa obra no início de “A Culpa é das Estrelas”. Existe, portanto, essa metalinguagem deliciosa, que explora a relação de Hazel com um livro que é notável e essencialmente diferente do de John Green. Apesar do autor ressaltar que esta é uma obra de ficção e que nem sempre é fiel à realidade, muitas de suas descrições são tão detalhadas que quase nos permite ver as imagens pintadas entre aquelas palavras. Exemplos disso são as descrições da cidade de Indianapolis – onde ele mora, e onde se passa a maior parte da história – e da Casa de Anne Frank, onde a jovem judia que escreveu o famoso diário morou depois de fugir da Alemanha, e que hoje é um museu.
          Quanto ao final, acho que ele é perfeito. Demorei algum tempo para perceber isso após terminar o livro, mas acabei admitindo que não poderia ser diferente – e John Green curiosamente te condiciona durante todo o livro a chegar a essa mesma conclusão.
          Minha última consideração é que a obra, ainda que gire ao redor de protagonistas com câncer e que provoque aquela sensação de que deveríamos ser gratos por conseguirmos fazer coisas simples como subir escadas, não é sobre câncer; não se resume a isso. É, na verdade, um retrato emocionante e muito bem escrito sobre como Hazel Grace vê o mundo e filosofa sobre ele. E também acho que não é demais qualificar algumas passagens de “A Culpa é das Estrelas” como geniais, como, por exemplo, as referências, ao longo do livro, às tulipas, flores que se tornam mais bonitas quando “doentes”. Não garanto as lágrimas, porém posso assegurar as risadas e uma história bonita e marcante, que dificilmente será esquecida.

 “The Fault in our Stars” é o quarto romance de John Green (autor de “Quem É Você, Alasca”) e foi lançado em 2012 pela editora Dutton Books. Aqui no Brasil, foi publicado como “A Culpa é das Estrelas” pela editora Intrínseca em julho de 2012.

P.S.: Há outra citação do livro no meu tumblr de citações http://admiraveismundosnovos.tumblr.com

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta


          Não poderia ser mais simples. Também pudera, não é nada além de símbolos enfileirados. Símbolos estranhos, definitivamente. Qual a grande genialidade por trás desses traços e curvas? Dê a uma criança de pouca idade papel e canetinha e ela poderá lhe surpreender com novos símbolos que ela mesma criou. Aliás, alguém poderia ser menos criativo ao instituir um tímido e insignificante ponto para frear as orações e dar lugar a outras? Um ponto: um pouco de tinta que, acidentalmente, pinga no papel e, acidentalmente, encerra uma história. Não uma história qualquer, todas as histórias. Quando Shakespeare talhou com tanto cuidado aquela história de amor e juventude, após pensar no último verso, ele pensou no ponto. Exatamente o mesmo ponto que encerrou a longa viagem de Ulisses e celebrou sua volta para os braços de Penélope. Goethe, aquele do amor e sofrimento, levou a vida inteira para pintar a tragédia do pobre Fausto – uma vida inteira até que o ponto final tivesse lugar na última página.
          Mas será que eu dei a entender que o ponto tem alguma importância? Se sim, desculpe. O ponto não vale absolutamente nada. Nenhuma das letras valem. O problema é que elas te fazem crer o contrário. Se eu as rechaço por meio de uma mensagem escrita, parece que estou me contradizendo. Não. São somente elas, as malditas letras, que se unem com o fim de me desmoralizar. Se eu estou parecendo insano e o que eu escrevo não parece ter muito sentido, então dou a elas o mérito de terem alcançado seu objetivo. Antes, porém, vou recorrer a uma analogia para forçar a imaginação de quem lê e, assim, desviar sua atenção desses símbolos traiçoeiros.
          Imagine-se olhando para um céu limpo e estrelado. Alguém te pede que você veja as estrelas, o que é bastante simples. Você olha para cima e vê os pequenos brilhos sem maiores problemas. Sim, cada uma daquelas pequenas luzes oblíquas e dissimuladas escondem em si corpos celestes colossais, alguns muito maiores do que a Terra ou do que a nossa própria imaginação. Mas, ainda assim, nunca deixaram de ser estrelas. Agora, você é solicitado para criar desenhos entre elas. Mesmo que você não saiba nem localizar as Três Marias do Cinturão do Órion, você – com um pouco de boa vontade – será capaz de imaginar várias figuras estampadas no céu escuro. Não, elas não estão lá, nenhuma delas, afinal são só estrelas, lembra-se?, mas de alguma forma você consegue vê-las e contemplá-las sem muito esforço. E talvez, como eu, você enxergue na constelação de Leão um rato ou um cavalo, não importa. Importa que as constelações não estão lá no alto, senão em sete bilhões de espaços aqui embaixo.
          O que a gente apreende disso é que o que você, leitor, não está lendo o que eu escrevo. Porque as letras são estrelas e, conquanto elas sejam sempre iguais, o sentido que cada um dá a elas e as palavras é muito pessoal. Claro que a gente tenta introjetar em cada inocente ser humano essa uniformidade linguística, fazer com que todos sorvam os vocábulos do mesmo jeito, mas – como em todo processo que se preze – nesse também há falhas. São falhas impecáveis que só fazem aperfeiçoar esse sistema, e não o contrario. Enquanto essa padronização permite que nos comuniquemos, sua imperfeição possibilita que cada um tenha seu próprio caleidoscópio para apontar à vontade e ver o que quiser.
          Por isso, sinto muito, você jamais vai ler a história sobre Bentinho e Capitu que Machado de Assis genialmente imaginou. A história dele é só dele e nunca será de mais ninguém. E a questão – caso ainda não esteja claro – não são os múltiplos sentidos de cada palavra, listados pretensiosamente no dicionário; e sim a interpretação de cada um desses símbolos, que se confundem (sem seu consentimento) com tudo o que você já viveu. Quase como aquele cheiro de amora que carrega você – e apenas você – à lembrança enevoada de quando você apanhava amoras com sua avó no parque, quinze anos atrás.
          Tudo isso porque hoje é Dia do Escritor e as pessoas estão enaltecendo escritores dos mais diversos e suas obras – o que faz sentido –, mas estão se esquecendo de que textos são apenas depósitos de letras e aquele os organiza não deve ficar com o mérito sozinho. Afinal, cada história que você leu, é parte sua também. Isso posto, acho que mais do que celebrarmos, deveríamos ficar felizes por sermos dotados desta capacidade tão fantástica e extraordinária de construirmos histórias, mundos e personagens – a qualquer momento e em qualquer lugar, sendo escritores ou leitores ou nenhum dos dois.
          Não é o que está escrito. É você
          Ponto final


P.S.: O título é inspirado por uma trecho de A Hora da Estrela, da Clarice-de-todas-as-frases, e que pode ser lido aqui: http://claricelispector.blogspot.com.br/2008/04/hora-da-estrela-1-parte.html