Quando eu o ouvi dizer aquilo da primeira vez, ele mal havia acabado de completar quatro anos.
- Mamãe, quero um aviãozinho laranja.
Eu estava realmente ocupada na cozinha, esforçando-me para lembrar se a caponata original do meu sogro levava pimentões, então respondi automaticamente: depois eu compro um para você. Contudo, quando o depois chegou, o assunto do avião laranja foi esquecido tanto por ele quanto por mim e eu acabei descobrindo que ter colocado os pimentões havia sido um grande erro: por causa disso, seu Gusmão, pai do meu marido, murmurou algo à mesa sobre minha falta de dotes culinários, meu marido interveio e acabaram tocando em chagas delicadas - como a opinião do meu sogro de que nós nunca deveríamos ter nos casado. Nunca entendi por que as pessoas simplesmente não aceitam deixar alguns segredos guardados na caixa de Pandora e levar eles consigo quando partirem, sem que ninguém nunca desconfie da verdade. Os dois homens brigaram e, durante os dois anos seguintes, não se falaram.
Dois anos depois daquela noite, em 1992, meu marido morreu. Não sem antes agonizar durante nove meses e insistir que aquele câncer não era nada, que ele ficaria bem. Como um câncer pode não ser nada? Se, ao final, ele ficou bem, foi o único. Naquela tarde, voltando do velório, no banco de trás do Passat prata da minha irmã, meu filho se virou para mim e sussurrou, quase em tom de súplica:
- Mãe, você pode me dar um aviãozinho laranja?
Eu não me recordo de ter gritado tanto com ele como naquele dia. Eu bradava cada palavra de repreensão com tanta força que parecia ser minha intenção que meu marido me ouvisse lá do alto e percebesse como foi irresponsável de sua parte ter nos abandonado. Estava desolada e não podia entender como uma criança que acaba de perder o pai tem cabeça para aviõezinhos, sejam laranjas, azuis, brancos ou cor de luto. Eu apenas não compreendia.
Alguns meses depois, quando a mera menção do nome do meu esposo não me fazia verter lágrimas mais, meu filho teve uma febre bastante alta e precisou ficar em repouso. A fim de trazer-lhe um pouco de alegria, saí pela cidade em busca do tal aviãozinho: não tive sucesso. Comprei um de vinte centímetros, pintado de vinho, e ele me retribuiu com um semissorriso. Era evidente que eu não lhe tinha satisfeito. A partir de então, sempre que ia ao centro (e sempre que me lembrava), caminhava perscrutando as vitrines das lojas de brinquedo, em busca de um modelo da cor do uniforme da seleção holandesa.
Certa feita, soube por acaso que um primo de terceiro grau viajaria para os Estados Unidos. Tive algum trabalho para conseguir seu telefone, mas acabei entrando e contato e pedindo que ele procurasse o brinquedo por lá. Meu pequeno já estava com sete anos e não mencionava mais o aviãozinho, no entanto eu sabia que o silêncio se tratava apenas de falta de esperança, não de falta de desejo. Eu achava que, no fundo, ele ainda queria tanto aquilo quanto quis ganhar um beijo da Carolina Bonfim na pré-adolescência. Para meu infortúnio, a bagagem do tal primo, na volta, foi farejada no aeroporto por cães bem treinados e encontraram 5kg de cocaína no meio de suas coisas - inclusive dentro da miniatura de avião laranja que estava acomodada entre as camisas e as meias. Os policiais obviamente levaram meu primo algemado e levaram junto todo o conteúdo da mala, que nunca mais foi visto por ninguém da família.
Em uma tentativa derradeira, quando meu filho completou doze anos, dei a ele um avião branco, mas que eu havia pintado de alaranjado com tinta acrílica. Ele logo percebeu a trapaça, entretanto não tenho dúvidas de que sua reação foi a mais genuína: ele riu, abraçou-me por um minuto inteiro e agradeceu como nunca antes (nem nunca depois). Porém bastou dois dias para que a cor descascasse e revelasse o branco sem-vida que era a verdade do brinquedo. Eu me ofereci para passar uma nova camada de tinta, mas ele disse que não precisava, que não importava.
Cinco meses e treze dias depois, ele me deixou. No segundo dia em que o deixei ir sozinho, a pé, para a escola (que ficava a sete quarteirões de casa), um carro estúpido e desgovernado o atingiu na calçada e o imprensou contra um portão de ferro. De suas costelas muitas se quebraram e algumas perfuraram órgãos vitais. Ele teve uma hemorragia. Em minutos, ele não tinha mais vida. Nem eu.
Eu não sei precisar quanto tempo demorei para me recuperar daquele dia, pois, francamente, ainda não me recuperei. Ainda existem aqueles dias em que acordo pensando em por que acordei, por que ainda estou viva, e o que mais eu preciso fazer para provar que já paguei por todos os meus pecados, mesmo pelos que não cometi.
Muito, muito tempo depois, minha irmã me convenceu a mudar daquela enorme residência, onde eu vivia sem ninguém; sem nem eu mesma. No processo da mudança, no revirar de gavetas, encontrei a embalagem vazia de um remédio que eu e meu marido dávamos todas as noites ao nosso filho quando bebê. Quando bem novo, ele teve uma maldita meningite e esteve à beira de perder a alma (como aconteceu menos de uma década depois). Naquela época, depois de uma longa estadia no hospital, pude trazer meu pequeno para casa, no entanto ainda éramos obrigados a administrar-lhe antibióticos e outros medicamentos de tarja preta. Decerto, não tinham um gosto bom, mas eram menos amargos que a doença e que o sofrimento; eram, em certa medida, a salvação, e ele sabia disso. Sabia que graças àquelas gotas conseguiu se recuperar e ter ânimo para prosseguir com a sua infância. Talvez eu e seu pai fossemos seus super-heróis, mas eram aqueles frasquinhos que guardavam a fonte de nossos poderes para sua cura.
Então, eu encontrei a embalagem de um dos remédios e, desenhado na caixa, havia um pequeno aviãozinho laranja sob um fundo de céu azul.
E eu apenas não compreendia.
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