A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos.
Tudo estava bem.
Só que não.
Poucos livros chegaram tão de surpresa quanto “Harry Potter and the Cursed Child”. Não
me refiro à data de lançamento – 31 de julho deste ano –, que não só foi
aguardada pelos fãs durante semanas, como é até bastante óbvia: o dia coincide
tanto com o aniversário de Harry, quanto com o de sua própria autora/criadora. O
fato surpreendente é anterior a isso: desde que colocou um ponto final (plot twist: era um ponto-e-vírgula) na saga
de Harry, Rony & Hermione, Joanne Rowling não descartava completamente a
possibilidade de um oitavo livro, mas sempre disse (até ano passado) que achava
improvável de acontecer, uma vez que a história, bem como seu final, fora muito
bem amarrada. Logicamente, isso fez com que a maioria de seus seguidores – com
exceção dos fãs brasileiros que-não-desistem-nunca – admitisse que Harry
Potter 8 ficaria somente no mundo das ideias e, quem quisesse, que se
contentasse com fanfics. Hoje a gente
percebe que, uma vez mais, JKR, ao nunca dizer nunca, estava tão somente dando
uma de sábia.
Seria injusto falar que Cursed
Child – ou “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada”, na tradução brasileira
que sairá pela Rocco em 31 de outubro – é uma continuação da série. Na verdade,
ela não é; mas é igualmente verdade que, nesse novo livro, somos confrontados
novamente com muitos dos antigos personagens, e, claro, acabamos conhecendo seu
destino, mais de dezenove anos depois da Batalha de Hogwarts. Também é
importante ressaltar que as 320 páginas tratam, na realidade, do roteiro de uma
peça homônima, encenada no Palace Theatre, em Londres (Inglaterra), em duas
partes. Isso significa que o livro é, basicamente, como as obras de Shakespeare: apenas diálogos, entremeados por breves descrições, como:
“Uma estação cheia e movimentada. Apinhada de transeuntes
tentando ir a algum lugar. No meio de toda aquela circulação e confusão, duas
gaiolas sacodem em cima dos carrinhos que os dois garotos, Tiago Potter e Alvo Potter, empurram. Logo atrás, vem a mãe deles, Gina. Seguem-nos um homem de trinta e
sete anos, Harry, e sua filha, Lílian, em seus ombros.”
[primeiras linhas, tradução livre]
Um outro ponto, que quem leu a sinopse já sabe, é que os protagonistas, desta vez, são o Albus/Alvo e o Scorpius/Escórpio* Malfoy, e não os seus pais. Mas, de novo, isso não impede que haja várias cenas apenas com os personagens originais (o trio, Draco etc.) – e menções a tantos outros que não chegam a dar as caras, então, de certa forma, é, sim, uma continuação, mas contada do ponto de vista dos filhos. Esse, no entanto, não é um ponto negativo: independentemente do retorno a Hogwarts (que perde um pouco da magia sem a descrição detalhada dos cenários), creio que o principal atrativo de Cursed Child seja esse apelo em forma de uma flechada certeira direto na nostalgia de quem acompanhou Potter & cia em outras aventuras.
Notavelmente é aí que mora o maior risco dessa continuação e
explica o porquê de eu ter ficado agoniado enquanto lia. O mundo bruxo criado
pela Joanne, como sabemos, corria, desde o início, o grande risco de
decepcionar com soluções fáceis: se a magia resolvesse tudo, não faria nem sentido todas as dificuldades e percalços enfrentados
pelos personagens ao longo de sete anos. A saída encontrada pela autora
funcionou muito bem: impor certos limites às soluções mágicas,
como, por exemplo, os jovens não poderem fazer magia fora da escola; não ser
possível (des)aparatar em Hogwarts; e, o principal, ser impossível trazer
alguém de volta à vida. Entretanto, em vez de aplicar a mesma regra da
ressuscitação à polêmica questão das viagens no tempo, ela sentiu vontade de
brincar com essa possibilidade e nos apresentou ao maravilhoso artefato do
vira-tempo. E é aí que reside o problema.
Em uma história comum, que eventualmente ganha uma
continuação, é opção do leitor saber ou não o futuro dos personagens originais.
Em uma obra como Harry Potter, em que viagens no tempo são plausíveis, a
continuação pode não apenas alterar a história futura, como também a pregressa, desconstruindo tudo o que nós conhecíamos – e nós sabemos que titia Rowling é bastante apreciadora da ideia de trazer fatos novos à saga (nada contra, claro, ela faz
o que quiser). O receio, realmente, é que, no roteiro de uma peça – que também
é, digamos, canônica –, ela acabasse alterando os acontecimentos já mais que
consolidados na cabeça de milhões de fãs até que os livros e os filmes já "não fizessem
sentido", pois tudo teria mudado e aquelas histórias nunca teriam acontecido. Isso para alguém que acredita na teoria do
caos**, como eu, é um risco gigantesco e seria bastante controverso. Não que teríamos um problema de fato, mas seria um pouco estranho, não é mesmo?
“A L V O : Verde é uma cor relaxante, não é? Quero dizer, as salas da Grifinória são ótimas e tudo, mas o problema com o vermelho é que, dizem, te deixam um pouco perturbado... não que eu esteja insinuando alguma coisa.”
[tradução livre]
Como eu não quero dar nenhum tipo de spoiler, vou parar as especulações por aqui. Há muito sobre os
acontecimentos a ser discutido, mas qualquer coisa que eu escrevesse a mais
iria revelar um pouco do enredo e eu acho interessante que todos possam passar
por cada reviravolta sem saber o que esperar. (Caso terminem de ler e queiram
conversar e debater, estou disponível em várias redes sociais por aí!) Todavia,
ainda sem entrar no mérito da história, é possível destacar outra questão. Acontece que, em muitas cenas, os diálogos dos adultos – ou seja, Harry,
Rony, Hermione, Draco e outros – não me soou crível; na verdade, parece que eu
estava vendo eles novamente com seus dezessete anos, fazendo piadas e brigando
entre si como se já não fossem pais e alguns não ocupassem cargos altíssimos no
Ministério da Magia. Sendo justo, em alguns poucos momentos eles de fato têm
discussões maduras, mas vez ou outra só (será esse mais um recurso nostálgico?). É claro que a razão disso pode ser
porque, pela primeira vez***, estou lendo uma obra de Harry Potter toda em
inglês, então talvez esse tipo de diálogo sempre foi natural aos adultos da
série e eu somente estranhei por não estar acostumado. Outro motivo pode ser por se tratar de uma peça, em que o ritmo é bem diferente e o espaço das falas é
limitado. Lembrando que o roteiro foi escrito em conjunto pela J. K., o diretor
John Tiffany e Jack Thorne, o responsável por transformá-lo em um espetáculo.
“RONY: Eu não tenho medo de nada. Exceto da minha mãe”
[tradução livre]
Falando sobre a peça, para mim foi quase impossível imaginar
algumas cenas que estavam descritas no livro. A começar pelo básico: como eles
simulam feitiços sendo disparados?! E uma pessoa que se transforma na outra? E sombras
que se revelam dementadores? Sem falar de cenários absolutamente inusitados
como a parte de cima de um trem e o interior de um lago! Sinceramente, espero
poder assistir ao show algum dia para
poder sanar essa curiosidade. Entretanto, posso afirmar que ler o roteiro já
foi o suficiente para me deixar satisfeito e para sossegar a ansiedade de
mergulhar mais uma vez nesse universo único.
Meu veredito final é que acho perfeitamente compreensível Cursed Child ser o livro mais vendido do ano no Reino Unido. Querendo ou não, o nome dO Menino-Que-Sobreviveu basta para empolgar fãs do mundo todo e, felizmente, dá para dizer que as expectativas foram cumpridas e, mais uma vez, Joanne não nos decepcionou. O roteiro é divertido, coeso – apesar de causar um estranhamento em alguns momentos – e é indubitavelmente prazeroso poder revisitar Hogwarts, o Expresso, a Floresta Proibida e rever muitos dos personagens que acompanhamos durante mais de uma década. Assim, continuo confiando na escritora mais aclamada de nossa época e que ela saiba a hora certa de agitar a varinha e enfim dizer finite incantatem.
Como bom aficionado por HP, já escrevi outros dois posts relacionados: um comparando as capas dos sete livros ao redor do mundo (o que aparentemente não vai dar para fazer com Cursed Child) e outro sobre minha paixão pela saga, na ocasião do lançamento do último filme.
NOTA: Não coloquei mais citações por questões, de novo, de
spoiler. Os trechos mais interessantes, infelizmente, revelariam um pedaço do
enredo. #KeepTheSecrets (não obstante, devo colocar algumas citações no AMN)
OUTRA NOTA: Gerou bastante polêmica o anúncio dos atores que
fariam o trio adultos, mas de tudo que faltou comentar, isso me parece o mais
desnecessário.
*Traduzi os nomes tal qual a Lia Wyler fez no epílogo de HP7
e como provavelmente farão novamente.
**Complexo demais para ser explicado em uma nota de rodapé,
a teoria do caos, bem resumidamente, apregoa que qualquer evento, por mais
insignificante que pareça, pode afetar bruscamente o curso das coisas em
qualquer lugar do universo -- aquela história de o farfalhar da borboleta causar um furacão no outro lado do mundo. Assim, se eu volto para o passado e piso em uma
folha que originalmente permanecia intacta, quando eu retornar para o presente
a humanidade pode ter sido extinta pelo vírus H1N1. Complexo assim.
***Da JKR, eu também li “The Casual Vacancy” e “The Cuckoo's
Calling” no original, mas como não é literatura juvenil, acho que não tem como
comparar.
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