Foto: archibald, via Flickr
Eu, que no íntimo desejei uma miopia a ser corrigida com
lentes de contato — coloridas.
Eu, que gastava o lápis azul para pintar, em meus rabiscos,
dois reluzentes olhinhos em cada personagem, espelhos do meu desejo.
Eu, que cheguei a fazer promessa com a fé de que minhas íris
perdessem ao menos um pouco de seu pigmento.
Eu, justo eu, perdi-me em contradições e mergulhei até ficar
sem ar em uma piscina com águas turvas; turvação de cor castanho-escura, assim
como os meus, assim como os dela.
Foi no instante em que ela me olhou da primeira vez. Foi
também pela maneira como me encarou após o jantar de ontem. É, na verdade —
devo confessar —, a cada uma das vezes em que ela me focaliza. Quando estou em
seu foco, estou no seu espaço. É escuro, mas não vazio. É tão cheio de estrelas
que há energia suficiente irradiando e me fornecendo calor. Talvez não sejam
estrelas, tal quais as pintinhas em suas têmporas, com as quais me divirto a formar constelações. Sim, talvez não sejam estrelas, mas definitivamente brilham; e se eu enxergo esse brilho é porque ele
contrasta com o fundo de um escuro sidéreo. Nele, sou astronauta, como em meus
sonhos de criança.
O que aliás diria meu eu-criança sobre minhas contradições?
Ou melhor: o que eu teria a lhe dizer? Que azul é uma bela cor, no
entanto há outra que a supera em vivacidade? Que a combinação de todas as
tonalidades virtuosas não resulta em preto, mas em uma cor única que eu e
poucos tivemos o privilégio de captar? Que, se eu pudesse escolher, passaria a
eternidade, em pé ou sentado, deitado, ajoelhado — em condição de agradecimento
—, esquadrinhando cada camada daqueles dois pequenos círculos?
O equivocado garoto que fui, decerto não conseguiria
compreender a Verdade que eu avistei naquele olhar. Sim, eu descobri a cor da
Verdade tão logo a reconheci: e ela nada tinha de azulado, senão uma tonalidade
dura e imaleável, quase segura. Uma cor que não instava que eu me aproximasse,
contudo tornava impossível que dela eu me desviasse. Mais que atraente, era
necessária. E mesmo quando o corpo ludibriava e a língua tentava enrolar, seus
olhos ainda eram sinceros comigo. Neles buscava todas as respostas de que
precisava e só houve uma que procurei em vão, ainda que fosse tão simples como
um sim ou um não; naquele momento, porém, só encontrei reticências circulando e
entendi que aquela era então a sua verdade. Entendi que suas pupilas eram ímãs
que ora tinham polaridade positiva, logo me puxavam e me arrastavam de um jeito
inexoravelmente magnético; mas ora eram negativas, como as minhas, quando então
tendiam a me repelir, pois queriam estar sós, livres, presas a nada. Nos dois
instantes, elas continuavam belas e firmes, como mágica.
Uma mágica que eu adorava admirar todas as manhãs em que eu
despertava primeiro e podia assistir as suas pálpebras descobrindo as janelas e
permitindo que a luz entrasse em mim. Luz amarronzada que refletia dos seus
olhos para os meus, permitindo que eu apreciasse em detalhes cada um daqueles
dois olhos-de-tigre. E, por um segundo, eu hesitava em beijá-la, porque não
queria perder os olhos dela de vista, queria-os sempre abertos, atentos, para
continuar a decifrá-los, como quando ela coloca a máscara e é unicamente por
meio deles que devo adivinhar seus sorrisos, suas tristezas, suas dúvidas e
relutâncias.
Logo eu, que almejava o azul do céu, fui contemplado com
todo o universo. E enquanto ela retribuir meu olhar, este será meu farol e eu
saberei, assim, para onde rumar.