domingo, 14 de fevereiro de 2021

O erro de Psiquê (ou Cada uma das infinitas faces do amor)

 


Dentre tantas coisas que não conseguia compreender, uma delas era por que lhe haviam dado aquela incumbência. Considerava-a injusta, contraditória e sua realização parecia impossível, até mesmo para alguém como ele. Veja que seus feitos não eram poucos. Quanta inspiração ele já não havia soprado, quantas primaveras não haviam sido possíveis apenas por conta de seu toque de vida. Entretanto, agora estava lidando com algo ainda mais incompreensível e não entendia a razão de precisarem daquilo. Não haviam homens e mulheres vivido perfeitamente bem sem saber do amor até agora? Que súbita necessidade era essa de dar forma a sentimentos tão ignotos, mesmo entre os seres superiores? Por que tirar de Eros a exclusividade dos segredos daquela arte tão sutil e excelsa?

Precisava no entanto admitir que, e qualquer um de seus pares haveria de reconhecê-lo, ele era o melhor no ofício da formação. Dava forma ao que quer que fosse: moldou os vários tipos de alegria; construiu os tristes muros que separam cada pessoa de seus semelhantes; aperfeiçoou a melancolia, antes tão seca; e, em um esforço digno de grande mérito, mostrou ao mundo sua versão da saudade, que logo foi adotada por todos.

Agora... o amor?

Amor, aquele rompante incendiário que aquieta qualquer chama descontrolada? Aquele que aquece como o verão, desabrocha como a primavera, acolhe como o outono e sossega como o inverno? O amor que é luz, mas nunca é visto, pois tão intenso é seu brilho que ninguém consegue divisar suas fronteiras, fazendo com que ele se confunda com o próprio espaço em que se imergem tudo e todos? O mesmo amor que guia cada ato de bondade e justiça a troco de ser mal compreendido e confundido com todos os outros sentimentos existentes? Como se amor fosse um sentimento; como se o amor brotasse em cada coração de forma individual e não fosse o ritmo de cada batida e a sincronia entre todos os corações pulsantes. Como se o amor não fosse o fôlego que ele mesmo tira dos apaixonados e distribui entre cada ser prestes a receber o sopro da vida. Amor, aquele que antecede à própria vida e se confunde com o ato de criação. E, no entanto, haviam colocado sob sua responsabilidade conceber o que concebe.

Estava tendo um sério bloqueio. Andava para lá e para cá, observava de longe a interação dos casais, interceptava e sem pedir permissão lia (mais por deleite do que por outra coisa) várias das cartas trocadas entre amantes, anotava tantas juras de paixão quanto pudesse testemunhar, desde as mais sucintas até as mais emocionadas. Chegou a recolher lágrimas tímidas de noivos quando viam a noiva na porta, prestes a caminhar sua vida até ele; e as lágrimas aliviadas das noivas quando o sim era recíproco. Entendeu que tentar compreendê-lo seria rir de si mesmo. Muitos artistas tentavam e acreditavam ter grande sucesso na empreitada, mesmo que o amor capturado pelos seus pincéis e canetas-tinteiro fosse uma única faceta de algo com infinitas faces.

O que mais o indignou, porém, provavelmente foi escutar de pobres desamados que o amor fere; dói; trai o corpo e a alma. Que ingenuidade! Como poderiam tomar aquilo por amor? Como não se distingue a pureza e a beleza de um diamante do corte que advém de suas pontas lapidadas caso seja manuseado indevidamente? Indignado, pôs-se a trabalhar com ainda mais afinco, pois decidiu que era hora de o mundo conhecer o que o amor significava de fato. Se eles compreenderiam, não sabia dizer, até apostava que não, mas a obra isentaria o artista de quaisquer explicações.

Tinha em frente a si um espaço em branco. Preencheu-o logo com cores, todas elas, tomando o cuidado de deixar um espaço vazio, para sinalizar que sempre haverá algum lugar para onde ele ainda resta crescer. Formou com elas a forma perfeita – uma esfera –, mas por ser composta de todas as outras formas, tinha também arestas, porque assim deve ser. Fê-la do maior tamanho que conseguiu com seus materiais, tomando cuidado para que ela coubesse no menor dos átomos do menor dos seres vivos, pois em nenhuma célula deveria haver falta de amor. Seu primeiro modelo foram os lábios, mas percebeu logo que era nos olhares que deveria buscar sua inspiração; entretanto, acabou confessando ter usado também as mãos entrelaçadas, os narizes se tocando, os pés se esquentando e o corpo todo quando se molda em um abraço.

Para a finalização da peça, a fim de que ela ficasse irretocável, consultou Diotima de Mantinea e a sacerdotisa ensinou-lhe, como havia ensinado antes a Sócrates, sobre as escaladas do amor. Consultou ainda a São Valentim, que lhe contou segredos nunca antes verbalizados sobre o matrimônio e por que, na vida a dois, os silêncios são mais importantes do que aquilo que se diz um para outro. Contudo, nada talvez tenha o surpreendido mais do que o real simbolismo por trás da troca de alianças... Tudo isso foi material para que o esculpir fosse se moldando na forma última.

Quando deu por terminado, ficou todo orgulhoso – como talvez fosse de se esperar – e sentiu o ímpeto de exibir sua recriação. Por vaidade, procurou logo o Cupido, certo de que ele, autoridade no assunto, aprovaria seu trabalho. O ser divinal, no entanto, após elogiar seu esforço, declarou que estava incompleto. Ora, o que faltava? Em resposta, o Cupido o pegou pela mão e o levou para observar um casal que ele havia flechado tempos atrás.

Eles estavam, ainda, se conhecendo. Era a beleza da descoberta que estavam presenciando. Às vezes, era por meio das conversas: as mais aleatórias possíveis e todas as vezes seguindo rumos inesperados, sem pressa alguma de chegar a algum lugar. Outras, era através de uma cumplicidade muda, pois nem sempre palavras precisam ser gastas. Muitas vezes era com a ajuda dos gestos, do tato, do toque, da sensibilidade. As mais impressionantes eram pelo olhar; bastava eles se cruzarem, a conexão era imediata e a mais sincera de todas, já que os olhos não conseguem mentir. Mas a descoberta também se dava pelos perdões e pelo agradecimento. “Preciso ir”. “Por favor, fique”. “...Fico”.

Cupido perguntou se ele compreendera e ele respondeu que sim, pois verdadeiramente havia entendido sua falha.

Questionou a si mesmo se haveria um jeito de consertá-la, porém sabia que não. Essa sua tarefa estava – como esteve desde o princípio – fadada à incompletude, à imperfeição. Mesmo assim, ele conseguia sentir paz. Percebeu enfim que mesmo o maior dos artistas era menor que o que estava por trás daquelas poucas letrinhas. Em português, apenas quatro. Uma constelação de só quatro grandiosas estrelas e outras milhares menores, invisíveis a olho nu. E um brilho visto do outro lado do universo.

O jeito era torcer para que cada um dos seres fosse capaz de usar essa força com sabedoria. Quando, sem remorsos, decidiu destruir sua obra inacabada, fez isso despedaçando-a em milhões e milhões de pequenos pedaços, que a boa brisa acabou por carregar. Carregou através do tempo e do espaço e foi levando aqueles invisíveis fragmentos. Até hoje, dizem, ainda é possível encontrar alguns por aí, mas – um detalhe – eles só são vistos no contraste com algo muito único: a visão da pessoa amada.

Fonte: Janella Sillito, via Flickr.

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