terça-feira, 12 de junho de 2018

A maré

Ana está prestes a entrar no metrô. As portas já se abriram e em segundos se fecharão. O casal dá um último abraço e um beijo rápido. Ela carrega duas malas, seu destino é provavelmente o aeroporto e, de lá, alguma terra além das fronteiras imaginativas. Ana se encaminha para o vagão e, antes que ela entrasse, antes que a distância entre eles comece a aumentar a uma velocidade de quase 80 km/h, ele grita uma última declaração. Não é um “eu te amo”. É um “me espera”. Não deu para ver se ela sorriu em concordância ou se ela deixou transparecer sua desesperança de que se veriam novamente em breve. Em instantes, o trem já avançava pelo túnel, deixando o jovem desamparado e sozinho na estação; ainda há bastante gente ao seu redor, mas nenhuma delas é Ana. Após conferir as horas no celular, ele sai em disparada pela escada rolante e desaparece no andar de cima. Talvez estivesse atrasado para o trabalho que tinha conseguido a fim de juntar dinheiro e conseguir pagar uma passagem para ficar junto de sua namorada. Ou talvez não tivesse conseguido segurar a ansiedade e marcou de encontrar a amante logo pela manhã para celebrar que já não precisava tomar cuidado para que não fosse flagrado por Ana. O amor tem desses mistérios.

Se tem algo que pode melhorar substancialmente meu humor, ao menos por uns minutos, é avistar um casal na rua. Pode parecer incompreensível, pois você não conhece aquelas pessoas, não sabe nada do seu contexto, não faz ideia se eles tiveram uma briga homérica pela manhã nem se terminarão naquela mesma noite, porém, naquela captura instantânea da história do casal, eles parecem felizes. Estão se abraçando. Estão rindo juntos. Estão se dando as mãos  —  ainda que por hábito  — , entrelaçando-se em uma rede que os conecta, permitindo-se usar da sensibilidade dos dedos para sentir o outro, para mantê-los em contato, mesmo que o pensamento esteja em outros lugares. Eles se escolheram. Talvez em uma festa, sob o som de uma irritante música eletrônica, quando ela tentou a sorte e perguntou o nome daquele garoto apoiado no balcão. Ou vai ver eles passaram meses conversando, sem perceberem que eram a melhor companhia um do outro, até que o ficar juntos pareceu o rumo mais natural.

Hoje é a data escolhida para celebrar esses encontros. Uma escolha arbitrária e calcada em interesses econômicos, sem dúvida — nós nem sequer temos a chance de nos escorarmos em São Valentim (ao menos nossa comemoração é mais próxima do inverno) —, mas nossa facilidade em cair na rotina pede essa lembrança, um dia no ano que seja, para que não nos esqueçamos de festejar esse amor. E não se trata de qualquer amor. Os gregos já dividiam esse sentimento em vários, porque entendiam que o amor é muitos. Inclusive o amor-próprio, que sem dúvidas é fundamental, não me parece competir com o amor romântico.

“Ame a si mesmo antes de amar outra pessoa”, muitas vezes me disseram, possivelmente ignorando que o amor é a terra mais fértil e que, se você não esperar, sempre lhe dará frutos, muitas vezes na forma de mais do mesmo sentimento. Assim, quem tem amor nunca sofrerá da falta dele, e não há caminho mais fácil para se aceitar do que se doar e, então, conhecer a melhor versão de si.



Artur e Amanda terminaram. Eu suponho que sim, porque hoje ele não está no ônibus. E hoje é sábado. Sábado é o dia em que ele pega o mesmo ônibus que eu, pontualmente neste horário, para visitar Amanda, moradora de uma cidade vizinha. Ao menos, é o que imagino; nós nunca trocamos uma palavra. Hoje senti a ausência de Artur e lamentei por ele. Provavelmente está em casa tocando violão para tentar se distrair, evitando todas as músicas que ele tocava especialmente para Amanda — e são muitas. Ele adorava tocar enquanto ela o acompanhava com sua voz carregada de um delicioso sotaque. Artur até chegou a arriscar compor algumas canções para sua amada. Já tinha um novo rascunho que planejara finalizar antes do aniversário dela, em algumas semanas. Agora, não tinha mais sentido encontrar uma boa rima para “deslumbrado”. Ele ainda usava a palheta que ela lhe dera no Natal, personalizada com o nome dos dois e a data em que começaram o romance. Festejavam todos os anos aquele primeiro beijo no meio de sorrisos. Aquele momento imortalizável que deveria ter durado para sempre, mas foi cruel o suficiente para acabar. Deixou saudades, remorso, lágrimas e diversos presentes trocados, inclusive o pingente que ele mantinha no pescoço como sinal de resistência. Ainda era cedo para dar o término como definitivo. Fazia apenas dois dias a discussão, ainda havia esperanças. Mesmo que Amanda tenha alegado estar confusa e apesar de ela não ter derramado uma lágrima sequer ao explicar didaticamente sua decisão. Sua não; de seu coração, ela disse. Talvez neste exato minuto o celular de Artur esteja tocando. O coração dele dispara. É Amanda. Ele sabia que a relação deles era pra valer. Tantas coisas ainda havia para eles fazerem juntos! Tantas viagens, tantos restaurantes que queriam conhecer, o cachorro que iriam adotar em conjunto (já tinham até uma lista de nomes!)… O rapaz agarra o celular com avidez e atende sem olhar. Era engano.

Dos conselhos para hoje, o mais importante deles certamente não é “compre flores”, nem “compre chocolate” ou “compre qualquer coisa só para não passar em branco”, nem mesmo “surpreenda a pessoa que você ama” — apesar de ser bem difícil fugir dessa chuva de imperativos vazios. A questão, que não vale somente para hoje, é: seja grato. É como dizem certas músicas…

“Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver alguém que você gostaria que estivesse sempre com você…”

Pois bem, leve a sério. Há literalmente bilhões de pessoas no mundo e se alguém, dentre todas as opções (que não são tantas, mas estão cada vez maiores), escolheu você, sinta-se privilegiado. Não foi uma escolha para compor um time e jogar uma partida de 90 minutos. Foi uma escalação para o mais alto grau de companheirismo; para estar ao seu lado em qualquer circunstância, para não te deixar só e suportar contigo suas dores; foi para se esforçar em te fazer feliz, celebrar cada passo adiante e cuidar para que você não retroceda. Isso tudo será o famigerado amor? Acredito que não. Mas um relacionamento não se constrói apenas com amor. É um amalgama dos mais poderosos que, quando bem cerzido, é um belo exemplo de bondade, paciência, carinho, paixão e diversas outras virtudes tão humanas.

Talvez você já tenha dado mil abraços na pessoa adorada, mas o de hoje será especial. Não porque o dia é especial; o dia é o mais ordinário de todos e pelo mundo afora há milhões de pessoas com preocupações maiores que o ursinho de pelúcia que você comprou e tem medo de ela não gostar. Mas por trás de toda essa agitação materialista, esconde-se uma mensagem trazida do fundo da natureza, que hoje, como todos os dias, tem a atenção voltada para você e seu cônjuge, e a mensagem diz: ame. Ame o quanto for possível. Ame, seja o melhor de si mesmo. Ame, porque o elo que o verdadeiro amor constrói, é resistente ao calor de uma forja, a uma broca de diamante, ao espaço e ao tempo. Diferente de flores e chocolates.

Anita se acabava em lágrimas, alheia aos curiosos que cruzavam pelo meio da praça observando a cena. Alexandre também não se importava com os olhares, só parecia querer o bem da moça. Seu abraço era um escudo de consolo, protegendo-a contra insignificâncias externas. Ela havia perdido a data de inscrição para o vestibular. Ela havia perdido o emprego. Ela havia perdido a avó. Alguma coisa nela estava agora faltando, havia um buraco que não se preenche fácil e muito lentamente se cicatriza. Alexandre não era habilidoso com a linha, e ainda que fosse, seria incapaz de costurar o coração da menina e suturar essa latente ferida. Entretanto, lá estava ele aquecendo-a com um abraço. Um abraço que, com certeza, não era só físico. E, ao mesmo tempo que dava atenção ao vazio, embalava-a com palavras de conforto. Ela podia contar com ele. Ele podia contar com ela. Contavam juntos e chegavam ao mesmo resultado: um.

“É impossível ser feliz sozinho”, alegou o poeta. Hoje acho que entendo o que ele quis dizer. É claro que você não precisa se envolver com alguém para encontrar sua felicidade. Não se trata desse tipo de impossibilidade. A bem da verdade, eu acredito que você pode até encontrar a felicidade só, em uma caverna, consumindo apenas o necessário, sem afetos, sem amigos, sem família, distante de tudo e de todos. A questão, ouso afirmar, é outra: por que alguém iria queria ser feliz assim?



Bônus :)