quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Ele disse, ela disse

Foto: gerada pela ferramenta de criação do Bing.

Ele disse que foi espontâneo.

Ela disse que estava reparando na pinta que ele tem pouco abaixo do lábio inferior e acabou se esquecendo de puxar assunto.

Ele disse que a conversa estava ótima, mas que não via mal em tirar uns momentos para contemplação. Tinha muito a contemplar, ele disse.

Ela disse que deixou a pinta de lado quando reparou melhor naquele sorriso tímido, na boca que ainda estava vacilante sobre falar algo ou deixar que sobreviesse o silêncio; ela também estava, mas não quis dizer nada.

Ele disse que chegou à conclusão, naquele momento, de que ela era a moça mais bonita com quem já havia saído.

Ela disse que não era incomum conhecer rapazes mais charmosos que ele, mas ele era, sem dúvidas, um dos mais carismáticos.

Ele disse que perdeu a noção do tempo naquele lugar em que tudo o que existia eram seus olhos e olhos dela, ambos os pares se atraindo e tragando-os para si.

Ela disse que não sabe qual música estava tocando de fundo.

Ele disse que também não faz a menor ideia.

Ela disse que não sabe se foi antes ou depois de pedirem as bebidas.

Ele disse que ela foi a primeira pessoa que pareceu notar a pequena cicatriz abaixo do seu olho direito.

Ela disse que ficou curiosa quanto àquela minúscula cicatriz, mas não quis quebrar o silêncio para perguntar.

Ele disse que o silêncio acalmou seu coração, antes disparado, tranquilizando-o por inteiro.

Ela disse que o silêncio a embalou e a colocou numa posição de conforto como nunca tinha sentido em um primeiro encontro.

Ele disse que não havia como se cansar de admirar cada detalhe do rosto dela; particularmente, quando os olhos deixavam, ele sempre voltava para as bochechas e para a ponta do nariz.

Ela disse que o rosto dele ia se tornando mais lindo a cada segundo.

Ele disse que tinha centenas de assuntos que queria conversar com ela – já até havia imaginado alguns diálogos na sua cabeça –, porém, a seu ver, isso podia esperar.

Ela disse que não planejou pegar na mão dele, simplesmente aconteceu.

Ele disse que não planejou pegar na mão dela, simplesmente aconteceu. E quando os dois viram, estavam com os dedos entrelaçados.

Ela disse que a cor dos olhos dele era verdadeiramente única.

Ele disse que nunca gostara dos seus olhos, de um castanho tão comum; mas em nenhum momento sentiu vergonha.

Ela disse que também não sentiu vergonha, ao contrário, queria que ele visse o que havia além daquilo que sempre admiravam ou rechaçavam.

Ele disse que às vezes percebia pessoas ao redor observando curiosas, mas as ignorava completamente.

Ela disse que não foi difícil esquecer que estavam em um restaurante.

Ele disse que esperava que um incêndio não começasse perto deles, pois eles demorariam bastante para notar.

Ela disse que a mão dele era cálida e um pouco áspera.

Ele disse que de vez em quando o sorriso dela se alargava com leveza, e nesses momentos ele se arrependia de não ter consigo uma aliança.

Ela disse que tudo aquilo era uma loucura, no entanto era uma loucura que estava adorando.

Ele disse que sua impressão era que naquele tempo a pôde conhecer melhor do que se tivessem passado horas jogando conversa fora.

Ela disse que entendeu muito dele enquanto seus olhos não podiam – e não queriam – fugir dos dela.

Ele disse que sempre gostou de observar a natureza desabrochar; e ali à sua frente estava a obra-prima entre todas as coisas mais belas do mundo, desabrochando sob seu olhar atento.

Ela disse que gostava de ir em museus e contemplar graciosas estátuas em seus mínimos detalhes.

Ele disse que a pupila esquerda dela era um pouco maior.

Ela disse que era verdade.

Ele disse que foi como um beijo, mas de olhos bem abertos.

Ela disse que foi bem melhor que muitos beijos.

Ele disse que ali teve o impulso de pedi-la em namoro, porém achou cedo demais.

Ela disse que teria aceitado.

Ele disse que tinha esperanças de que o restaurante fechasse e simplesmente os esquecem lá, para que eles pudessem continuar se encarando noite afora.

Ela disse que naturalmente apoiou o rosto em sua mão, como quem se prepara para ficar na mesma posição por horas a fio.

Ele disse que havia uma beleza no fundo dos olhos dela que, por fim, o deixou sem reação.

Ela disse que a graça daquele instante era que nenhuma ação ou reação eram necessárias.

Ele disse que não sabia as regras.

Ela disse que não havia regras.

Ele disse que começou a ficar receoso sobre a hora em que aquela conexão iria se romper e a magia talvez se esvanecesse.

Ela disse a ele que não se preocupasse com isso agora – e o fez ainda em silêncio, apenas com o olhar.

Ele disse que se acalmou.

Ela disse que sorriu.

Ele disse que aquele sorriso o iluminou por dentro.

Ela disse que sabia que ele sentia o mesmo.

Então ele disse...

Então ela disse...

Até que eles perceberam que não precisavam dizer mais nada.

domingo, 12 de junho de 2022

É você, só você

Então, é você.

Dentre todos, você.

Quantos mais belos? Quantos mais necessários?

Mas não: você.

Tantos já tentaram, todos já falharam.

E você... quase! Porém, ficou.

Permanece, em um incompreensível movimento,

Que só se explica por sincero sentimento

E não por um atributo qualquer.

Porque não importa quem vier

Nem quantos buquês trouxer,

Ela já preencheu seu jardim

Todo com um único espécime. No fim,

Foi você.

 

Dentre bilhões no mundo,

Foi você.

Só de convivência diária há tantas opções,

No entanto, ela escolheu, no fundo,

Você.

Não há ninguém além, sem questões,

De você.

 

Sim, poderia ser alguém mais interessante;

Mais inteligente, alto, forte, elegante;

Alguém que não fosse tão distraído;

Alguém que se garantisse como o melhor marido;

Alguém que estudou bem mais;

Alguém sem nenhum tipo de conflito com os pais;

Alguém que usasse um perfume melhor;

Alguém que não pensasse do futuro o pior;

Alguém que fosse lá e fizesse acontecer;

Alguém que fosse admirado por todo o seu saber;

Algum ativista de causas diversas;

Alguém que sempre estivesse nas melhores conversas;

Algum artista, bem-sucedido na função;

Alguém que parecesse trabalhar por diversão;

Alguém para quem a vida se assemelhasse a uma festa;

Aquela pessoa cuja opinião ninguém contesta;

Alguém que tivesse vasto conhecimento do mundo;

Enfim, alguém que entendesse qualquer assunto a fundo.

E, no entanto,

Contra todas as expectativas,

A melhor escolha não foi

A pessoa melhor

Mas a melhor pessoa

Para ela,

Que é

Você.

Aconteceu de ser

Você.

 

Não foi o primeiro romance dela,

Mesmo que ele a fizesse rir até chorar.

Não foi tampouco o segundo,

Que a fez entender de verdade o que era se apaixonar.

Nem mesmo o terceiro,

Ainda que eles sempre concordassem sobre o que pedir pro jantar.

Também não foi o quarto relacionamento,

Cujo término a fez se desidratar de quase chorar

E do qual ela achou que nunca fosse se recuperar.

Não foi o quinto,

Como a cartomante havia feito ela acreditar.

E nem o sexto,

Por que mesmo? Ela nem consegue se lembrar.

O fato é que todos os que vieram antes

Terão que se conformar:

Na mão esquerda dela só há um dedo anelar

E mesmo no coração, com tanto espaço pra amar,

Há uma vaga especial para só um ocupar.

E ele já está cheio, sinto informar,

Cheio por você.

 

Sim, é realmente você.

Mesmo você comprando o presente no próprio dia;

Mesmo você nem sempre sendo a melhor companhia;

Mesmo você fazendo confusão com as datas;

Mesmo você tendo umas manias tão chatas;

Mesmo você não conseguindo se levantar mais cedo e preparar o café da manhã;

Mesmo você podendo fazer hoje e deixando para fazer amanhã;

Mesmo você arrumando uma solução quando ela só quer consolo;

Mesmo você sendo incapaz de seguir uma receita sem queimar o bolo;

Mesmo você reclamando de detalhes sem importância;

Mesmo muitas das discussões sendo por mera implicância;

Mesmo você achando que não merece ser tão feliz;

Mesmo ela não acreditando em tudo o que você diz.

 

Não obstante essa lista,

Não há maior conquista

Do que você poder dizer

“Sou eu.”

E ter a certeza de que venceu.

Afinal, o que importaria

Mais que esse amor desinteressado?

Que outro título você almejaria

Que não o de namorado?

De que valeria ter todo o resto

Se não pudesse dizer

Que é vão qualquer protesto

Porque ela já escolheu

E ela escolheu

Você?

 

Se isso não merece

A maior gratidão imaginável

Não sei o que mereceria.

Pois se de muitas coisas você ainda carece

Nenhuma delas é tão indispensável

Quanto aquilo que ninguém descreveria

Com facilidade, mas que

Você possui, de verdade

Porque foi contemplado também

Com o sentimento de liberdade

Que só conhece quem está com alguém.

 

Por isso, meu caro

Nunca se esqueça,

Ainda que às vezes você se esmoreça,

Algo aqui deve ficar bem claro:

Nunca deixe de agradecer

Por sabe-se lá o que fez ela escolher

Não A, nem B, nem C,

Mas unicamente,

Especialmente,

Inquestionavelmente,

Apaixonadamente

Você.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Lira dos Trinta Anos

(Sem métrica, sem rima, sem maiores preocupações.)

Para ler ao som de: "30", de Adele.


Demora trinta anos para chegar e, ainda assim, chega sem sobreaviso.

Um verdadeiro susto o movimento repentino da casa das dezenas, é preciso ter cuidado com os números.

Vinte. Vinte e poucos. Vinte e tantos. Trinta.

Os fios brancos infiltrados provocam uma risada,

a enxaqueca em reação a noites maldormidas suscita inquietude,

a dor no abaixar e no levantar, frustração.

Não deveriam anunciar-se aos quarenta? Quem resolveu adiantar as coisas?

(Melhor ignorar os pensamentos sórdidos sobre a postura desmontada na cadeira, a alimentação meio mal balanceada e as pernas que não correm há meses.)

Quem adiantou também os relógios? E trocou os calendários? E inverteu as estações?

Quem disse que o tempo é relativo, sendo que ele vem e vai de forma tão absoluta?

Muitas perguntas, nenhuma resposta: quão inusitado! A essa altura?

Cadê a vida que não se mostra? Já não teve tempo suficiente? Mais interrogações.

A luz da ignorância está um pouco mais forte. A luz no fim do túnel, que antes nem se via, também já se divisa, embora seja ainda

um ponto brilhoso e distante, como uma frágil

estrela.

Sente-se a estranheza amarga de se estar em algum ponto entre a juventude e a velhice – talvez no meio, talvez ainda no primeiro terço, quem há de saber?

Inocentes fomos adolescentes que acreditavam em certezas; e, no entanto, quem poderá culpar-nos?

Pareciam tão tangíveis, a alguns poucos anos de distância.

Os trinta eram quase um ponto de chegada, de vitória.

E então... (Pausa.)

Não há quem não tenha virado colecionador; no mínimo, acumulador: de decepções, expectativas arruinadas, corações partidos e desilusões a encher prateleiras.

Bem-vindo aos trinta.

Tudo cessa? Tudo continua. A lei da impermanência não alcança a rotina de desafios, dificuldades e insatisfações. Culpa de ninguém. 

Quem tenta confortar, diz acalme-se e diz ainda: estar vivo é um privilégio.

A bem da verdade, só há duas opções: chegar aos trinta ou não chegar –

e quem não chega é porque ficou

pelo caminho.

Quanto a mim, estou aqui. Eu e você.

Ainda respiro vida, ainda tenho muito a aprender, sentir, experimentar, vivenciar,

muito pelo que me apaixonar.

E mesmo que não houvesse, tudo valeu a pena até aqui

e continuará valendo, tenho certeza –

a certeza que me dão minhas três décadas,

que poderei ostentar assim que com elas fizer as pazes.

Até lá, observo nos brilhos do céu o encanto do trigésimo

porque é ancestral e profunda sua semântica.

Como se não fosse um número.

Como se não tivesse forma ou tamanho

e fosse maior que os quatorze bilhões do Universo.

Será possível?

Aos vinte, talvez fosse.

Aos trinta, o impossível tem novas fronteiras

e o mundo é,

ao mesmo tempo,

mais doce e mais amargo.

Um brinde aos novos sabores,

aos novos amores

e aos vencedores

desta batalha sem fim.

Que sejam bem-sucedidas como

as campanhas de Alexandre Magno,

o Grande,

que em trinta e dois anos

conquistou boa parte do mundo (conhecido);

e como as composições de Mozart,

também Grandioso,

austríaco que,

em trinta e cinco anos,

conquistou boa parte do mundo (conhecido).

Que Assim Seja – clamo.

Todavia não é deles

o reflexo que eu enxergo no espelho.

Pouco importa.

É de outro alguém que sonha

revolucionar o mundo por meio de suas ações.

Pequenas ações, mas jamais insignificantes.

Que aos trinta não me falte para tanto oportunidades,

saúde,

tempo

e vida.

O resto será conquista.

Dou sempre as boas-vindas a quem quiser me acompanhar:

estendo a mão àqueles que vêm atrás;

oriento-me por aqueles que já chegaram lá.

Por trinta anos, eu subi. Agora, tenho uma boa visão de tudo. Posso ver longe, apesar da miopia (que só tende a piorar).

Agora, preciso seguir. O topo ainda está distante e não há tempo a perder.

Se há trinta mil razões para permanecer inerte,

há ao menos uma para acreditar que ainda me resta muito trabalho pela frente e que preciso honrar a chance que me foi dada.

Estou vivo. Respiro.

É o suficiente

e é mais do que eu poderia pedir.

Há esperança

para essa minha trajetória balzaquiana.

Basta olhar para cima e buscar o sol para entender:

ainda há Luz.


Obs.: Publicado após dois meses de procrastinação, porque algumas coisas não mudam com a idade...

sábado, 12 de junho de 2021

A tempestade que chega é da cor dos teus olhos

Foto: archibald, via Flickr



Logo eu, que sempre invejei os genes dos ramos mais turmalina da família.

Eu, que no íntimo desejei uma miopia a ser corrigida com lentes de contato — coloridas.

Eu, que gastava o lápis azul para pintar, em meus rabiscos, dois reluzentes olhinhos em cada personagem, espelhos do meu desejo.

Eu, que cheguei a fazer promessa com a fé de que minhas íris perdessem ao menos um pouco de seu pigmento.

Eu, justo eu, perdi-me em contradições e mergulhei até ficar sem ar em uma piscina com águas turvas; turvação de cor castanho-escura, assim como os meus, assim como os dela.

Foi no instante em que ela me olhou da primeira vez. Foi também pela maneira como me encarou após o jantar de ontem. É, na verdade — devo confessar —, a cada uma das vezes em que ela me focaliza. Quando estou em seu foco, estou no seu espaço. É escuro, mas não vazio. É tão cheio de estrelas que há energia suficiente irradiando e me fornecendo calor. Talvez não sejam estrelas, tal quais as pintinhas em suas têmporas, com as quais me divirto a formar constelações. Sim, talvez não sejam estrelas, mas definitivamente brilham; e se eu enxergo esse brilho é porque ele contrasta com o fundo de um escuro sidéreo. Nele, sou astronauta, como em meus sonhos de criança.

O que aliás diria meu eu-criança sobre minhas contradições? Ou melhor: o que eu teria a lhe dizer? Que azul é uma bela cor, no entanto há outra que a supera em vivacidade? Que a combinação de todas as tonalidades virtuosas não resulta em preto, mas em uma cor única que eu e poucos tivemos o privilégio de captar? Que, se eu pudesse escolher, passaria a eternidade, em pé ou sentado, deitado, ajoelhado — em condição de agradecimento —, esquadrinhando cada camada daqueles dois pequenos círculos?

O equivocado garoto que fui, decerto não conseguiria compreender a Verdade que eu avistei naquele olhar. Sim, eu descobri a cor da Verdade tão logo a reconheci: e ela nada tinha de azulado, senão uma tonalidade dura e imaleável, quase segura. Uma cor que não instava que eu me aproximasse, contudo tornava impossível que dela eu me desviasse. Mais que atraente, era necessária. E mesmo quando o corpo ludibriava e a língua tentava enrolar, seus olhos ainda eram sinceros comigo. Neles buscava todas as respostas de que precisava e só houve uma que procurei em vão, ainda que fosse tão simples como um sim ou um não; naquele momento, porém, só encontrei reticências circulando e entendi que aquela era então a sua verdade. Entendi que suas pupilas eram ímãs que ora tinham polaridade positiva, logo me puxavam e me arrastavam de um jeito inexoravelmente magnético; mas ora eram negativas, como as minhas, quando então tendiam a me repelir, pois queriam estar sós, livres, presas a nada. Nos dois instantes, elas continuavam belas e firmes, como mágica.

Uma mágica que eu adorava admirar todas as manhãs em que eu despertava primeiro e podia assistir as suas pálpebras descobrindo as janelas e permitindo que a luz entrasse em mim. Luz amarronzada que refletia dos seus olhos para os meus, permitindo que eu apreciasse em detalhes cada um daqueles dois olhos-de-tigre. E, por um segundo, eu hesitava em beijá-la, porque não queria perder os olhos dela de vista, queria-os sempre abertos, atentos, para continuar a decifrá-los, como quando ela coloca a máscara e é unicamente por meio deles que devo adivinhar seus sorrisos, suas tristezas, suas dúvidas e relutâncias.

Logo eu, que almejava o azul do céu, fui contemplado com todo o universo. E enquanto ela retribuir meu olhar, este será meu farol e eu saberei, assim, para onde rumar.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

O erro de Psiquê (ou Cada uma das infinitas faces do amor)

 


Dentre tantas coisas que não conseguia compreender, uma delas era por que lhe haviam dado aquela incumbência. Considerava-a injusta, contraditória e sua realização parecia impossível, até mesmo para alguém como ele. Veja que seus feitos não eram poucos. Quanta inspiração ele já não havia soprado, quantas primaveras não haviam sido possíveis apenas por conta de seu toque de vida. Entretanto, agora estava lidando com algo ainda mais incompreensível e não entendia a razão de precisarem daquilo. Não haviam homens e mulheres vivido perfeitamente bem sem saber do amor até agora? Que súbita necessidade era essa de dar forma a sentimentos tão ignotos, mesmo entre os seres superiores? Por que tirar de Eros a exclusividade dos segredos daquela arte tão sutil e excelsa?

Precisava no entanto admitir que, e qualquer um de seus pares haveria de reconhecê-lo, ele era o melhor no ofício da formação. Dava forma ao que quer que fosse: moldou os vários tipos de alegria; construiu os tristes muros que separam cada pessoa de seus semelhantes; aperfeiçoou a melancolia, antes tão seca; e, em um esforço digno de grande mérito, mostrou ao mundo sua versão da saudade, que logo foi adotada por todos.

Agora... o amor?

Amor, aquele rompante incendiário que aquieta qualquer chama descontrolada? Aquele que aquece como o verão, desabrocha como a primavera, acolhe como o outono e sossega como o inverno? O amor que é luz, mas nunca é visto, pois tão intenso é seu brilho que ninguém consegue divisar suas fronteiras, fazendo com que ele se confunda com o próprio espaço em que se imergem tudo e todos? O mesmo amor que guia cada ato de bondade e justiça a troco de ser mal compreendido e confundido com todos os outros sentimentos existentes? Como se amor fosse um sentimento; como se o amor brotasse em cada coração de forma individual e não fosse o ritmo de cada batida e a sincronia entre todos os corações pulsantes. Como se o amor não fosse o fôlego que ele mesmo tira dos apaixonados e distribui entre cada ser prestes a receber o sopro da vida. Amor, aquele que antecede à própria vida e se confunde com o ato de criação. E, no entanto, haviam colocado sob sua responsabilidade conceber o que concebe.

Estava tendo um sério bloqueio. Andava para lá e para cá, observava de longe a interação dos casais, interceptava e sem pedir permissão lia (mais por deleite do que por outra coisa) várias das cartas trocadas entre amantes, anotava tantas juras de paixão quanto pudesse testemunhar, desde as mais sucintas até as mais emocionadas. Chegou a recolher lágrimas tímidas de noivos quando viam a noiva na porta, prestes a caminhar sua vida até ele; e as lágrimas aliviadas das noivas quando o sim era recíproco. Entendeu que tentar compreendê-lo seria rir de si mesmo. Muitos artistas tentavam e acreditavam ter grande sucesso na empreitada, mesmo que o amor capturado pelos seus pincéis e canetas-tinteiro fosse uma única faceta de algo com infinitas faces.

O que mais o indignou, porém, provavelmente foi escutar de pobres desamados que o amor fere; dói; trai o corpo e a alma. Que ingenuidade! Como poderiam tomar aquilo por amor? Como não se distingue a pureza e a beleza de um diamante do corte que advém de suas pontas lapidadas caso seja manuseado indevidamente? Indignado, pôs-se a trabalhar com ainda mais afinco, pois decidiu que era hora de o mundo conhecer o que o amor significava de fato. Se eles compreenderiam, não sabia dizer, até apostava que não, mas a obra isentaria o artista de quaisquer explicações.

Tinha em frente a si um espaço em branco. Preencheu-o logo com cores, todas elas, tomando o cuidado de deixar um espaço vazio, para sinalizar que sempre haverá algum lugar para onde ele ainda resta crescer. Formou com elas a forma perfeita – uma esfera –, mas por ser composta de todas as outras formas, tinha também arestas, porque assim deve ser. Fê-la do maior tamanho que conseguiu com seus materiais, tomando cuidado para que ela coubesse no menor dos átomos do menor dos seres vivos, pois em nenhuma célula deveria haver falta de amor. Seu primeiro modelo foram os lábios, mas percebeu logo que era nos olhares que deveria buscar sua inspiração; entretanto, acabou confessando ter usado também as mãos entrelaçadas, os narizes se tocando, os pés se esquentando e o corpo todo quando se molda em um abraço.

Para a finalização da peça, a fim de que ela ficasse irretocável, consultou Diotima de Mantinea e a sacerdotisa ensinou-lhe, como havia ensinado antes a Sócrates, sobre as escaladas do amor. Consultou ainda a São Valentim, que lhe contou segredos nunca antes verbalizados sobre o matrimônio e por que, na vida a dois, os silêncios são mais importantes do que aquilo que se diz um para outro. Contudo, nada talvez tenha o surpreendido mais do que o real simbolismo por trás da troca de alianças... Tudo isso foi material para que o esculpir fosse se moldando na forma última.

Quando deu por terminado, ficou todo orgulhoso – como talvez fosse de se esperar – e sentiu o ímpeto de exibir sua recriação. Por vaidade, procurou logo o Cupido, certo de que ele, autoridade no assunto, aprovaria seu trabalho. O ser divinal, no entanto, após elogiar seu esforço, declarou que estava incompleto. Ora, o que faltava? Em resposta, o Cupido o pegou pela mão e o levou para observar um casal que ele havia flechado tempos atrás.

Eles estavam, ainda, se conhecendo. Era a beleza da descoberta que estavam presenciando. Às vezes, era por meio das conversas: as mais aleatórias possíveis e todas as vezes seguindo rumos inesperados, sem pressa alguma de chegar a algum lugar. Outras, era através de uma cumplicidade muda, pois nem sempre palavras precisam ser gastas. Muitas vezes era com a ajuda dos gestos, do tato, do toque, da sensibilidade. As mais impressionantes eram pelo olhar; bastava eles se cruzarem, a conexão era imediata e a mais sincera de todas, já que os olhos não conseguem mentir. Mas a descoberta também se dava pelos perdões e pelo agradecimento. “Preciso ir”. “Por favor, fique”. “...Fico”.

Cupido perguntou se ele compreendera e ele respondeu que sim, pois verdadeiramente havia entendido sua falha.

Questionou a si mesmo se haveria um jeito de consertá-la, porém sabia que não. Essa sua tarefa estava – como esteve desde o princípio – fadada à incompletude, à imperfeição. Mesmo assim, ele conseguia sentir paz. Percebeu enfim que mesmo o maior dos artistas era menor que o que estava por trás daquelas poucas letrinhas. Em português, apenas quatro. Uma constelação de só quatro grandiosas estrelas e outras milhares menores, invisíveis a olho nu. E um brilho visto do outro lado do universo.

O jeito era torcer para que cada um dos seres fosse capaz de usar essa força com sabedoria. Quando, sem remorsos, decidiu destruir sua obra inacabada, fez isso despedaçando-a em milhões e milhões de pequenos pedaços, que a boa brisa acabou por carregar. Carregou através do tempo e do espaço e foi levando aqueles invisíveis fragmentos. Até hoje, dizem, ainda é possível encontrar alguns por aí, mas – um detalhe – eles só são vistos no contraste com algo muito único: a visão da pessoa amada.

Fonte: Janella Sillito, via Flickr.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Casulo

Percebi que tinha algo errado quando comecei a trocar o dia pela noite. Minha rotina de almoçar tarde já vinha desde os tempos da agência, porém agora o almoço havia tomado o lugar da ceia: eu degustava um macarrão com molho caseiro observando o cair do sol. Por volta de meia-noite, eu ia preparar minha janta, que me sustentaria noite afora. Elaborava os mais requintados pratos que conseguia, tomando cuidado para não fazer muito barulho e perturbar os vizinhos que já dormiam. Ou talvez não dormissem, como eu, que jamais tivera um sono de qualidade desde que isso começou. No entanto, dia após dia, insistia em colocar a cabeça no travesseiro e tentar pregar os olhos. Para atrapalhar, ainda precisava lidar com a luz que ignorava as cortinas e inundava o quarto. A essas horas, em tempos menos catastróficos, eu estaria na minha segunda ou terceira xícara de café, chegando ao auge do meu estado de vitalidade laboral.

Depois de duas semanas, usei alguns sacos de lixo e outros remendos para cobrir os vidros e poder dar ao meu corpo as condições de repousar, uma compensação por ter bagunçado todo o meu relógio biológico. Não adiantou, mas pelo menos agora eu tinha um canto escuro no aparamento, um ambiente mais propício para refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Eu poderia até fazer isso durante a noite ou de madrugada, mas estes eram meus novos horários preferidos para cumprir com todas as minhas obrigações diárias, com a empresa e com minha própria casa. Nada mais favorável para a concentração e a produtividade do que trabalhar sob o silêncio noturno. Quando amanhecia e o movimento dava sinais de despertar, era minha deixa para me recolher à escuridão artificial do meu quarto.

Em alguns dias, a fraca claridade que ainda conseguia espreitar pela janela passou a me incomodar e eu fui obrigado a pregar dois cobertores por cima para barrar qualquer feixe mais atrevido; executei esse projeto com tanto esmero que já nem sabia como faria para retirar todas as camadas de bloqueio e abrir a janela novamente. Não havia problema: a esperança de que eu precisasse abri-la para observar algo lá fora parecia muito, muito distante. Mais mórbidas que as trevas que me embalavam eram as que me consumiam por dentro. Às vezes eu pensava haver me esvaziado, contudo quando eu investigava mais a fundo, descobria que estava preenchido por essa desilusão e amargura.

Se espiava pela janela e via as ruas todas desertas, me desesperava. Agora, se – o que acontecia com mais frequência – vislumbrava pessoas a caminhar ou carros zanzando para lá e para cá, minha reação era muito pior. Crescia dentro de mim um ódio, eu não sabia exatamente de quê ou de quem, só sabia que me espetava. E que aquele sentimento, de mãos dadas com a angústia que não me largava, retorcia todos os meus órgãos e me sufocava pelo menos uma vez por dia.

Achei melhor não olhar mais. Ao menos, não para baixo. Olhava apenas reto, pois no prédio em frente havia ela. Ela que também estava confinada, embora eu desconfiasse que fosse ao mercado ao menos uma vez por semana. Eu sei que nem todos fizeram como eu e estocaram alimentos suficientes para meses, no entanto eu ainda a alertava para só sair de casa quando já não houvesse um único pão com molho de tomate para fazer as vezes de uma refeição. Ah, mas ela não queria ficar sem o pão brioche dela... E as verduras sempre frescas... Não, ela não me contou, mas eu sei. Nossa comunicação ficou um tanto prejudicada depois que meu celular caiu na pia – enquanto eu tentava assistir a uma live e lavar a louça – e não quis mais ligar. Desde então, eu não tenho notícias de mais ninguém. E certamente não me arriscarei no cenário apocalíptico em busca de alguém que o conserte: nem sei mais onde deixei as chaves da porta da frente. Voltei àquela era esquecida em que, para saber de alguém, era preciso visitá-lo. Não vi nisso problemas; meus pais eram os únicos que poderiam depender de mim de alguma forma e, da última vez em que nos falamos, eles estavam muito bem. Melhores do que eu inclusive, já que lá naquela casa de campo ninguém chega; e, de todo modo, como eu poderia contribuir com alguma coisa estando em outro estado?

Chateou-me, contudo, não poder mais jogar conversa fora com ela. Muitas vezes eu trocava as manhãs de sono por uma ou duas horas de falatório com aquela mulher de olhos brilhantes e sotaque engraçado. Agora, só um aceno da janela. Era tudo. De algum jeito conseguimos combinar o horário e sempre que dava cinco horas da tarde, estávamos os dois nas suas respectivas janelas, sacudindo as mãos, mandando beijos, simulando os abraços que retribuiríamos quando tudo isso acabasse – e eu aproveitava para exibir minhas novas obras culinárias. Alguns dias ela se esquecia, mas eu não achava ruim; também não a cobraria quando um dia voltássemos a estar cara a cara. Entendo que às vezes, em tempos como esses, tempo é um conceito confuso e fugidio.

Estranho, realmente, foi quando ela deixou de aparecer três dias seguidos. E então no quarto, quinto, sexto. Uma semana e eu já amargava mais essa desilusão, pronta para ser arquivada com as outras. Talvez, contra todos os meus princípios, eu pudesse ter entrado em alguma rede social e enviado mensagens de interrogação, no entanto eu não queria achar que estava desesperado a esse ponto. Eu tentava com certa insistência recuperar meu celular, em vão. A tela preta era tudo o que ele tinha a me oferecer; além de quase que uma sombra do meu próprio reflexo. Não era o suficiente. Eu precisava dela. Das suas palavras, duras ou não. Da sua voz. Do seu sotaque. O seu afago também fazia falta, mas eu sentia que poderia pacientemente esperar por ele.

Alguns dias depois, estava deitado em meu sofá, tentado a ligar a televisão – o que não acontecia há mais de um mês –, quando pensei ter avistado alguém na janela dela. Seria ela enfim? Estava longe das cinco horas, mas a essa altura quem ainda olha no relógio? Levantei-me para observar mais de perto, porém logo o vulto desapareceu e não retornou pela próxima meia hora, até eu desistir da tocaia. Não saia da minha mente, todavia, que a figura parecia ser masculina. Mesmo eu só tendo visto-o de relance, na minha memória o contorno, a roupa e o andar pertenciam a um homem, o que era curioso, já que ela morava com a tia apenas.

Estranho. Naquele mesmo dia, pulei alguma refeição, porque passei horas buscando material dentro da minha própria casa para fazer naquela janela o que já havia feito no meu quarto. Já não havia mais o que ver. O barulho do trânsito me dizia que o fluxo de pessoas ainda não cessara, todavia não havia nada que eu pudesse fazer para abafar o som. Entretanto, eu podia, sim, colaborar para que eu não caísse na tentação de espiar a vida na cidade, que decerto estaria debilitada em poucos dias.

Cobri tudo. Todos os vidros. Bati pregos, sem me preocupar com os furos, nem com o trabalho que teria, no final, para reverter tudo aquilo. Estraguei roupas de cama, arrastei móveis, tudo enquanto sussurrava a mim mesmo do futuro que não se preocupasse, era para o nosso próprio bem. Quando isso tudo passar, pensei, descobrirei cada uma das janelas com o prazer de quem está prestes a enxergar o colorido da vida pela primeira vez. Haverá movimento em todo lugar e isso, em vez de rancor, me trará alegria como nunca antes. Mas, por agora, não preciso de nada disso. Também não preciso de notícias ou tragédias em tempo real. Nem dos meus amigos e familiares, nem mesmo do mundo.

Eu tinha meu próprio mundo e nele me fechei. Ele era escuro, iluminado apenas artificialmente, mas era livre de vírus. Na verdade, era livre também de qualquer expressão de otimismo ou vontade. No começo, pareceu-me uma troca justa. Alguns meses depois, eu estava cansado demais para decidir sobre o valor de qualquer coisa. O barulho lá embaixo havia se intensificado, eu só não sabia se era fruto de uma crescente inconsequência das pessoas ou se, de fato, a cidade estava esterilizada. Na dúvida, não arrisquei. Tinha certeza de que, quando isso tudo acabasse, alguém bateria na minha porta para me avisar que era seguro sair. Talvez seria ela a bater. Viria até mim com saco de pipocas para estourarmos no meu micro-ondas e assistirmos a um filme francês. Como nos velhos tempos.

E o que normal já foi um dia, normal de novo seria.

Até lá, só me resta aguardar.

Em silêncio.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Os fabulosos Anos 20


Eu nunca soube direito o que dizer a um ano que termina. Ao que chega, é simples; não é necessário dar instrução alguma, ele mesmo dá um jeito de se ajustar no espaço vacante e começa seu trabalho com impecável maestria. As despedidas, porém, são meu ponto fraco. E, quase sempre, deixam aquela sensação agridoce de alívio e culpa. Finalmente, mais um ciclo que se renova; mas, espera, talvez eu não tenha me despedido dele como deveria, honrado todas as memórias, demonstrado gratidão ou questionado uma última vez uns porquês. Assim o é. A cada 31 de dezembro. Eu já passei por quase trinta desses e o engraçado é que, em vez de melhorar, sempre pioram. É quase que inevitável que cresça a vontade de um adeus solene, enquanto minhas resoluções de ser mais desapegado falham miseravelmente mais uma vez.

Este ano (ou ano passado? ou de lá pra cá?), esse martírio atingiu seu ápice, já que estamos terminando uma década inteira. Os Anos 10. Até pouco tempo atrás, período famoso pelas chagas da 1ª Guerra Mundial. A partir de hoje, uma época em que tanto aconteceu que é difícil defini-la em um só evento ou apenas uma revolução tecnológica. Portanto, fica o questionamento: como se encerra toda uma década? Tentei responder a isso durante as últimas semanas, conforme ameaçava-se a virada do calendário, mas confesso que falhei.

O melhor que consegui foi uma missão que autoestipulei de escrever todos os dias, nem que seja apenas um pouco. Questão de criar o hábito. Bom, este texto é meu começo favorável. Seria uma pena se eu não soubesse que falharei miseravelmente muito antes de terminar o ano. Tenho minhas dúvidas se sequer durará até o mês que vem. Ok, preciso trabalhar no meu negativismo. De toda forma, foi o máximo que consegui para festejar não somente a chegada de uma década nova em folha como um ano de dobradinhas. 20-20. Quando presenciaremos essa maravilha matemática de novo? Daqui a 1100 anos? Parece-me melhor e mais razoável que aproveitemos agora. Pois bem, são 366 nasceres solares pela frente – e eu não faço a mínima noção de o que fazer com eles. E você?

No final, acho que é isto: mais um ano em que fingimos saber o que estamos fazendo. Tomara que possamos nos aproximar ao menos alguns passos do caminho correto e que esse duplo 20 seja auspicioso. Sejamos bem-vindos à nova década! Vai ser fascinante, disso eu tenho certeza. E, bem... nos encontramos em 2030? Combinado então. Até já!