domingo, 5 de outubro de 2014

Resiliência

Ainda posso sentir quando o vento entra pelas frestas e desvia de onde você deveria estar.
Chega em mim com todo esse atrevimento e eu lhe explico que há tanto tempo que nem me lembro mais - o que minhas contagens mentais diárias desmentem - você já não se faz presente aqui.
Inconformada, como um dia estive eu, a brisa também me abandona, e eu entendo que junto com você se foi todo o sentido que fazia de mim uma boa companhia.
Caiu a noite no pequeno espaço em que me guardo todos os dias. Tenho medo é que nem o brilho do sol, que incomoda meu sono perene e me dá o estímulo para abrir os olhos, atreva-se a invadir um antro vazio.
Quando você soltou a mão das minhas para colocá-la na maçaneta e enfim partir, eu me lembro como se fosse ontem (e quando foi?) de haver-lhe dito fique, eu te farei bem. Você respondeu não, eu mesma me farei esse bem.
Achei ter visto lágrimas aquarelarem seu rosto nu, mas era minha própria visão que se turvara da tristeza que molhava minha face.
E na melancolia que se percebe em cada fio das teias que crescem nos vértices de cada cômodo sem que eu me importe, meu coração submergiu e, nas penúrias de minha própria comiseração, eu me fiz só - e me afoguei.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Os Melhores Filmes de Todos os Tempos

(Este post foi originalmente publicado no blog Into Movies.)

Volta e meia, quando se discute sobre cinema, a pergunta fatídica tende a aparecer: qual o melhor filme de todos os tempos? Obviamente, não há uma resposta fácil − e talvez nem mesmo uma difícil −, entretanto isso nunca impediu que críticos e fãs da sétima arte tentassem buscá-la, utilizando-se dos mais variáveis critérios e referências. No geral, as grandes publicações promovem votações, às vezes especializadas, às vezes mais amplas, para chegarem a uma conclusão que, todos sabem, é tão discutível e dinâmica quanto uma opinião sobre uma pintura de Dalí.

De qualquer modo, ainda que lhes falte uma absoluta (e inalcançável) confiabilidade, tais rankings podem inspirar e dar dicas sobre grandes filmes já rodados. Isso porque quesitos como boa direção, boa fotografia, atuações memoráveis e uma trilha sonora adequada não são tão relativos assim, e, geralmente, há um certo consenso sobre quais obras acabam se destacando. É por isso que vale a pena dar olhada nas listas publicadas de tempos em tempos, nem que seja para conferir se bate com seu gosto pessoal.

Uma das mais recentes é a da revista de cinema “Hollywood Reporter”, publicada há cerca de um mês. Para que eles chegassem ao resultado, convidaram para participar da votação pessoas diretamente envolvidas com a indústria do entretenimento, como diretores, vencedores do Oscar e donos de estúdio − entre eles, Alan Horn, o presidente da Disney; Gary Ross, o diretor do primeiro filme de “Jogos Vorazes”; e Vince Gilligan, criador da série “Breaking Bad”. As primeiras posições não surpreendem tanto: em primeiro lugar, vem o famoso filme ítalo-americano «O Poderoso Chefão» (The Godfather, 1972), seguido de «O Mágico de Oz» (The Wizard of Oz, 1939) e «Cidadão Kane» (Citizen Kane, 1941). Logo após, temos dois filmes recentes: «Um Sonho de Liberdade» (The Shawshank Redemption, 1994), adaptação de um livro do mestre do terror Stephen King, e uma das grandes obras de Tarantino, «Pulp Fiction» (Pulp Fiction, 1994), em 5º lugar.


É curioso observar a carência de filmes mais recentes nesta lista. O primeiro filme posterior a 1994 a aparecer entre os 100 maiores é «Fargo» (Fargo, 1996), dos irmãos Coen, apenas na 33ª posição. Somente 15 produções são da década de 2000 e nenhuma delas é encontrada antes dos cinquenta primeiros. Essa observação ajudaria a corroborar a teoria de que há uma tendência natural a se valorizar os filmes mais antigos, talvez porque, com o avanço das tecnologias de efeitos gráficos, os estúdios estejam deixando de lado a qualidade do roteiro para visarem uma maior bilheteria através de fórmulas previsíveis aliadas com espetáculos visuais. Não há nenhum filme brasileiro no ranking.

Mas talvez mais interessantes que as opiniões técnicas, sejam as opiniões dos próprios espectadores. Nesse sentido, vale a pena analisarmos a publicação da Revista Empire dos “301 Maiores Filmes de Todos os Tempos”. Com o sucesso da lista anterior da Empire, de 2008, que reuniu 10 mil leitores e dezenas de críticos para chegarem aos 500 Maiores Filmes, foi aberta uma nova enquete aos leitores e o resultado, após ‘centenas de milhares’ de participações, foi divulgado em maio deste ano. Em 2008, o topo pertencia também a «O Poderoso Chefão», acompanhado de «Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida» (Raiders of the Lost Ark, 1981) e «Star Wars Episódio V: O Império Contra-Ataca» (Star Wars Episode V: The Empire Strikes Back, 1980). Na lista atual, os três continuam entre os dez primeiros, mas com uma ligeira troca de posições: a medalha de ouro ficou com o quinto volume da franquia de George Lucas, e a de prata com o drama de Don Corleone. Em terceiro, um filme lançado no mesmo ano da lista anterior: «Batman: O Cavaleiro das Trevas» (The Dark Knight, 2008), marcado pela exímia atuação de Heath Ledger.


Existem vários recortes possíveis de serem feitos com essas três centenas (mais um) de filmes, que acabam revelando um pouco mais sobre os gostos dos espectadores e podem dar uma luz para que possamos compreender melhor o que faz o sucesso de um filme. Por exemplo, é notável que a hexalogia “Star Wars” fez bastante sucesso, tanto que quatro dos filmes estão na lista − deixando de fora os dois primeiros da nova trilogia, que contam a história de Anakin Skywalker antes de se tornar o terrível Darth Vader. As expectativas também são bastante altas para o Volume VII da saga, que está sendo dirigida por J. J. Abrams e sobre o qual ainda não sabe muita coisa. J. J., ou Jeffrey Jacob, também fez parte da equipe por trás de «Star Trek» (Star Trek, 2009) e «Além da Escuridão - Star Trek» (Star Trek Into Darkness, 2013), lembrados em 188º e 245º lugares, respectivamente.

O diretor Christopher Nolan é um dos mais consagrados pela votação, se considerarmos que cinco das obras eleitas são dele. Entre elas, a nova trilogia do Cavaleiro das Trevas e um dos filmes recentes mais bem posicionados em várias das listas: «A Origem» (Inception, 2010), aqui em 10º. Quentin Tarantino, por sua vez, conquistou o 5º lugar com «Pulp Fiction», mas não apenas: outras cinco posições também são de filmes que ele dirigiu, como «Cães de Aluguel» (Reservoir Dogs, 1992), em 75º, o segundo filme de sua carreira. Considerando que ele foi diretor em apenas 11 filmes, a constatação é ainda mais admirável. Stanley Kubrick também tem seis produções entre as 301, isto é, todos os filmes que dirigiu desde «Dr. Fantástico» (Dr Strangelove Or: How I Learned To Stop Worrying And Love The Bomb, 1964), exceto “Barry Lindon”, de 1975.

Por mais que elas nunca apareçam entre os primeiros, não seria possível, contudo, deixar completamente de fora as animações, que fazem sucesso desde 1937, com o lançamento de “Branca de Neve e os Sete Anões” pela Disney. Praticamente todas as animações no ranking, aliás, são dos mesmos estúdios do Mickey Mouse: entre as que não são, «A Viagem de Chiriro» (Spirited Away, 2001) é a mais bem classificada, em 82º. A melhor animação, contudo, segundo os leitores da britânica Empire, é o épico «O Rei Leão» (The Lion King, 1994), que não por acaso é o desenho com maior bilheteria da história, além de acumular dois Oscar, dois BAFTA e três Globo de Ouro, incluindo o de “Melhor Filme (Comédia/Musical)”.

Com a ascensão da computação gráfica, no entanto, as tradicionais animações começaram a dar lugar para personagens tridimensionais, e o estúdio Pixar produziu filmes com qualidade indiscutível. Assim, não é de se espantar que sete de seus filmes − metade dos que já foram lançados − figurem na lista. A primeira criação é também a que está mais no topo: «Toy Story» (Toy Story, 1995) aparece em 58º lugar e sua sequência, «Toy Story 3» (Toy Story 3, 2010) surge em 147º. É interessante notar a presença de «Frozen» (Frozen, 2013), filme da Disney, independente da Pixar, que estreou apenas seis meses antes da divulgação do resultado da votação.

Inclusive, há um número considerável de filmes da atualidade, talvez porque estejam mais presentes na memória do público. Apenas de 2013, há onze produções, entre eles vários dos que foram indicados ao Oscar, como «Gravidade» (Gravity, 2013), em 35º; «O Lobo de Wall Street» (The Wolf of Wall Street, 2013), de Scorsese, em 85º; e o vencedor da estatueta de “Melhor Filme” «12 Anos de Escravidão» (12 Years A Slave, 2013), em 119º. Deste ano, somente dois filmes entraram: «Capitão América 2: O Soldado Invernal» (Captain America: The Winter Soldier, 2014), em 183º, e «O Grande Hotel Budapeste» (The Grand Budapest Hotel, 2014), do diretor Wes Anderson, em 282º lugar.

Também é notável a presença de filmes que representam uma fuga ao padrão hollywoodiano, seja porque o idioma falado não é inglês, seja porque o diretor é de outra nacionalidade. Exemplos disso são o espanhol/mexicano «O Labirinto do Fauno» (Pan's Labyrinth, 2006), na ótima 50ª posição; o clássico de Federico Fellini «8 ½» (8 ½, 1963), em 195º; e o também italiano «Ladrões de Bicicleta» (The Bicycle Thief, 1948), na última posição. É claro que não se poderia deixar de mencionar o único brasileiro da listagem, «Cidade de Deus» (City of God, 2002), do paulistano Fernando Meirelles, na muito boa 88ª posição. Além dele, o filme  «Brazil - O Filme» (Brazil, 1985) também está nela, mas a verdade é que a comédia de Terry Gilliam, do grupo Monty Python, é de fato britânica e tem pouca relação com o nosso país.

Por fim, cabe apontar que só dois dos filmes da franquia “Harry Potter” constam entre os melhores: o primeiro − «Harry Potter e a Pedra Filosofal» (Harry Potter and the Sorcerer's Stone, 2001) − e o último − «Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 2» (Harry Potter and the Deathly Hallows - Part II, 2011). Quanto à trilogia de «O Senhor dos Anéis» (The Lord of the Rings, 2001/2002/2003), todas as partes estão entre os cinquenta primeiros, na seguinte ordem: 7º, 46º e 12º.



A LISTA (NADA) DEFINITIVA DOS MELHORES FILMES DE TODOS OS TEMPOS
Se as problemáticas de se levar em consideração listas como a da revista Empire forem relevadas por um minuto, é grande a tentação de ficar comparando os mais variados rankings entre si, em busca de padrões − e eles existem! De fato, há alguns filmes que aparecem em duas ou mais seleções entre os dez primeiros, o que pode ser um bom indício de que aquele título é um clássico ou, pelo menos, vale a pena ser visto.

Foi com esse objetivo que foi feita a análise das 7 maiores publicações que pretenderam eleger as maiores obras cinematográficas desde que os irmãos Lumière abriram as portas para que o cinema pudesse evoluir e se firmar como um dos principais meios de entretenimento. Algumas listas, como a comentada acima, eram abertas ao público − sejam leitores ou usuários; outras, optavam por votantes escolhidos criteriosamente pelo seu conhecimento técnico. A partir disso, foram comparados os 10 primeiros colocados de cada lista e verificou-se em quantos rankings cada obra aparecia. Além do número de listas, analisou-se também − em caso de empate − as posições em que ele figurava.

Os rankings utilizados foram os seguintes: “The 301 Greatest Movies Of All Time” (2014), da revista Empire; “Hollywood's 100 Favorite Films” (2014) da The Hollywood Reporter; “The Top 50 Greatest Films of All Time” (2012), da revista Sight & Sound, publicada pelo British Film Institute (BFI); “AFI's 100 Years... 100 Movies - 10th Anniversary Edition” (2007), do American Film Institute; “IMDb Top 250” (2014), do Internet Movie Database; “Top 100 Movies Of All Time” (2014), do Rotten Tomatoes; e “Movie Releases by Score of All Time - Metascore” (2014), do Metacritic.

E foi assim que chegamos à lista definitiva (ou não) do IntoMovies para Os Melhores Filmes de Todos os Tempos! Confira abaixo:


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Mecânica Laranja

Quando eu o ouvi dizer aquilo da primeira vez, ele mal havia acabado de completar quatro anos.

- Mamãe, quero um aviãozinho laranja.

Eu estava realmente ocupada na cozinha, esforçando-me para lembrar se a caponata original do meu sogro levava pimentões, então respondi automaticamente: depois eu compro um para você. Contudo, quando o depois chegou, o assunto do avião laranja foi esquecido tanto por ele quanto por mim e eu acabei descobrindo que ter colocado os pimentões havia sido um grande erro: por causa disso, seu Gusmão, pai do meu marido, murmurou algo à mesa sobre minha falta de dotes culinários, meu marido interveio e acabaram tocando em chagas delicadas - como a opinião do meu sogro de que nós nunca deveríamos ter nos casado. Nunca entendi por que as pessoas simplesmente não aceitam deixar alguns segredos guardados na caixa de Pandora e levar eles consigo quando partirem, sem que ninguém nunca desconfie da verdade. Os dois homens brigaram e, durante os dois anos seguintes, não se falaram.

Dois anos depois daquela noite, em 1992, meu marido morreu. Não sem antes agonizar durante nove meses e insistir que aquele câncer não era nada, que ele ficaria bem. Como um câncer pode não ser nada? Se, ao final, ele ficou bem, foi o único. Naquela tarde, voltando do velório, no banco de trás do Passat prata da minha irmã, meu filho se virou para mim e sussurrou, quase em tom de súplica:

- Mãe, você pode me dar um aviãozinho laranja?

Eu não me recordo de ter gritado tanto com ele como naquele dia. Eu bradava cada palavra de repreensão com tanta força que parecia ser minha intenção que meu marido me ouvisse lá do alto e percebesse como foi irresponsável de sua parte ter nos abandonado. Estava desolada e não podia entender como uma criança que acaba de perder o pai tem cabeça para aviõezinhos, sejam laranjas, azuis, brancos ou cor de luto. Eu apenas não compreendia.

Alguns meses depois, quando a mera menção do nome do meu esposo não me fazia verter lágrimas mais, meu filho teve uma febre bastante alta e precisou ficar em repouso. A fim de trazer-lhe um pouco de alegria, saí pela cidade em busca do tal aviãozinho: não tive sucesso. Comprei um de vinte centímetros, pintado de vinho, e ele me retribuiu com um semissorriso. Era evidente que eu não lhe tinha satisfeito. A partir de então, sempre que ia ao centro (e sempre que me lembrava), caminhava perscrutando as vitrines das lojas de brinquedo, em busca de um modelo da cor do uniforme da seleção holandesa.

Certa feita, soube por acaso que um primo de terceiro grau viajaria para os Estados Unidos. Tive algum trabalho para conseguir seu telefone, mas acabei entrando e contato e pedindo que ele procurasse o brinquedo por lá. Meu pequeno já estava com sete anos e não mencionava mais o aviãozinho, no entanto eu sabia que o silêncio se tratava apenas de falta de esperança, não de falta de desejo. Eu achava que, no fundo, ele ainda queria tanto aquilo quanto quis ganhar um beijo da Carolina Bonfim na pré-adolescência. Para meu infortúnio, a bagagem do tal primo, na volta, foi farejada no aeroporto por cães bem treinados e encontraram 5kg de cocaína no meio de suas coisas - inclusive dentro da miniatura de avião laranja que estava acomodada entre as camisas e as meias. Os policiais obviamente levaram meu primo algemado e levaram junto todo o conteúdo da mala, que nunca mais foi visto por ninguém da família.

Em uma tentativa derradeira, quando meu filho completou doze anos, dei a ele um avião branco, mas que eu havia pintado de alaranjado com tinta acrílica. Ele logo percebeu a trapaça, entretanto não tenho dúvidas de que sua reação foi a mais genuína: ele riu, abraçou-me por um minuto inteiro e agradeceu como nunca antes (nem nunca depois). Porém bastou dois dias para que a cor descascasse e revelasse o branco sem-vida que era a verdade do brinquedo. Eu me ofereci para passar uma nova camada de tinta, mas ele disse que não precisava, que não importava.

Cinco meses e treze dias depois, ele me deixou. No segundo dia em que o deixei ir sozinho, a pé, para a escola (que ficava a sete quarteirões de casa), um carro estúpido e desgovernado o atingiu na calçada e o imprensou contra um portão de ferro. De suas costelas muitas se quebraram e algumas perfuraram órgãos vitais. Ele teve uma hemorragia. Em minutos, ele não tinha mais vida. Nem eu.

Eu não sei precisar quanto tempo demorei para me recuperar daquele dia, pois, francamente, ainda não me recuperei. Ainda existem aqueles dias em que acordo pensando em por que acordei, por que ainda estou viva, e o que mais eu preciso fazer para provar que já paguei por todos os meus pecados, mesmo pelos que não cometi.

Muito, muito tempo depois, minha irmã me convenceu a mudar daquela enorme residência, onde eu vivia sem ninguém; sem nem eu mesma. No processo da mudança, no revirar de gavetas, encontrei a embalagem vazia de um remédio que eu e meu marido dávamos todas as noites ao nosso filho quando bebê. Quando bem novo, ele teve uma maldita meningite e esteve à beira de perder a alma (como aconteceu menos de uma década depois). Naquela época, depois de uma longa estadia no hospital, pude trazer meu pequeno para casa, no entanto ainda éramos obrigados a administrar-lhe antibióticos e outros medicamentos de tarja preta. Decerto, não tinham um gosto bom, mas eram menos amargos que a doença e que o sofrimento; eram, em certa medida, a salvação, e ele sabia disso. Sabia que graças àquelas gotas conseguiu se recuperar e ter ânimo para prosseguir com a sua infância. Talvez eu e seu pai fossemos seus super-heróis, mas eram aqueles frasquinhos que guardavam a fonte de nossos poderes para sua cura.

Então, eu encontrei a embalagem de um dos remédios e, desenhado na caixa, havia um pequeno aviãozinho laranja sob um fundo de céu azul.

E eu apenas não compreendia.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Bem-te-vi

Sempre que eu voltava do trabalho, ela estava lá. Observando-me, com aqueles olhos que já tinham visto tanta coisa e há muito não eram mais inocentes. Eram sua arma, que ela mirava em mim do outro lado da rua, cinco dias na semana, poucos minutos depois das 18h. Eu nunca reparei. Se eu olhasse para trás, enquanto buscava a chave de casa no bolso, veria nada além de um colégio e dezenas de jovens rindo, conversando, paquerando, usando o celular e se despedindo enquanto entravam nos suntuosos carros dos seus pais. Mas aquele par de olhares escuros, que insistiam em me focalizar, estavam perdidos naquela multidão pouco interessante.

Ela tinha dezessete e eu, vinte; vinte e três para ela, pois no mínimo três anos me envelhecia a barba que cobria boa parte do meu rosto. Os amigos dela já faziam brincadeiras com sua obsessão, no entanto (talvez por serem poucas suas amizades) ela não dava importância a isso. Começaram a insistir para que ela viesse falar comigo, mas o que eu iria querer com uma menina sem graça como ela?, argumentava. Ela sabia que eu não tinha namorada mais, porque me viu no dia em que eu cheguei desanimado, caminhando sem ânimo de caminhar, movimentando-me apenas por inércia, aquele dia em que minha ex havia me telefonado no trabalho e acabado com tudo em pouco mais que três minutos; e ela, quando me viu, foi quando quis me dar um abraço e, enquanto me olhava e tentava criar coragem para ir me consolar, notou que meu anelar direito estava nu, porque naquele mesmo dia eu já havia aproveitado as lágrimas para que a aliança deslizasse mais fácil para fora do meu dedo. Mesmo assim, meses depoisela ainda ficava receosa. Porque talvez eu já havia voltado a namorar, apenas tinha decidido a não usar mais alianças; talvez eu tivesse decidido que não queria mais compromissos por um longo tempo; talvez... 

Eu vim a descobrir depois que a minha ex havia terminado comigo pelo motivo menos surpreendente de todos - havia se interessado por outro cara. Mas a minha observadora não. Ela continuava fiel a mim, com um deslumbramento adolescente que eu mesmo nunca ousei ter. Mesmo que, dia após dia, eu a ignorasse em absoluto - embora involuntariamente. Se eu soubesse, teria me questionado o que ela viu em mim; o que sustentou essa sua tão persistente atenção por meses a fio? É bem verdade que, geralmente aos sábados e às vezes às sextas (e raramente às quintas), ela ia a alguma boate descarregar toda a tensão comum da idade em algum garoto qualquer. Mas, assim que o fim de semana se punha no horizonte, e chegava a segunda-feira toda de mansinho, estava ela lá, no portão do colégio, um pouco depois das seis da tarde, a me esperar e a toda minha indiferença - que, para ela, era quase um atrativo. 

O dia em que ela chegou mais perto de me cumprimentar foi, bem me lembro, em um dia 5 de dezembro. O período escolar estava prestes a acabar e, aluna do 3º ano que era, logo ela iria para alguma universidade (no sul do país, como pretendia), e seu décimo-oitavo aniversário era no domingo próximo. O convite para a festa que daria em sua casa estava seguro em uma de suas mãos, já ela não estava tão segura assim. O que acima de tudo a motivou a atravessar a rua em minha direção foi, imagino, saber que aquela seria sua última chance de se fazer notar. Naquele dia 5, em especial, eu estava bastante aéreo: havia acabado de trocar algumas palavras com uma moça no ônibus e - nem eu esperava que isso fosse acontecer - ela havia me dado seu número de telefone (o verdadeiro, descobri mais tarde). Assim, enquanto buscava as chaves no meu bolso, eu provavelmente estava me decidindo se Miguel ou Lucas, qual o nome mais bonito para o nosso futuro filho - que teria as feições da mãe, mas não escaparia de herdar o meu nariz nada discreto.

Ela e eu estávamos na mesma calçada agora, o convite quase sendo amassado na mão tímida dela. Por alguma razão que ninguém explica, naquele instante eu olhei para trás e vi a bonita garota que, parada, distante apenas dois metros, retribuiu meu olhar por noventa e sete centésimos de segundo, e o desviou. Quando voltou a me buscar, eu sorri para ela e ela sorriu para mim. Ah, sim, tinha um sorriso deliciado, gracioso (que superava o da moça do ônibus, se me atrevo a comparar). 

E isso é tudo o que sei. Não sei seu nome, não sei sua idade ou o que era aquele papel que não deixava escapar da mão direita. Minha única pista de que ela estudava no colégio em frente era seu uniforme branco e azul. Foi a primeira vez que a vi, terá sido a primeira vez que me viu também? O interesse com que aqueles olhos quase pretos me observavam me intrigou. No entanto, tudo o que fiz foi destrancar a porta e ela tudo o que fez foi atravessar a rua de volta ao aglomerado de estudantes. Voltou para perto de seus dois amigos, que riam da amiga destemida, e contou: 

- Um dia, eu vou me casar com ele. Podem anotar.

Nunca mais a vi. Nunca nem descobri que o real marido dela guarda uma semelhança quase gêmea comigo. Mas ela, como sempre, deve ter me visto. Porque daqueles olhos, tenho certeza, não é possível escapar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

East of the Sun, West of the Moon

he White Bear approaches a poor peasant and asks if he will give him his youngest daughter; in return, he will make the man rich. The girl is reluctant, so the peasant asks the bear to return, and persuades her in the meantime. The White Bear takes her off to a rich and enchanted castle. At night, he takes off his bear form in order to come to her bed as a man, although the lack of light means that she never sees him.

When she grows homesick, the bear agrees that she might go home as long as she agrees that she will never speak with her mother alone, but only when other people are about. At home, they welcome her, and her mother makes persistent attempts to speak with her alone, finally succeeding and persuading her to tell the whole tale. Hearing it, her mother insists that the White Bear must really be a troll, gives her some candles, and tells her to light them at night, to see what is sharing her bed.

She obeys, and finds he is a highly attractive prince, but she spills three drops of the melted tallow on him, waking him. He tells her that if she held out a year, he would have been free, but now he must go to his wicked stepmother, who enchanted him into this shape and lives in a castle east of the sun and west of the moon, and marry her hideous daughter, a troll princess.

In the morning, she finds that the palace has vanished. She sets out in search of him. Coming to a great mountain, she finds an old woman playing with a golden apple. She asks if she knows the way to the castle east of the sun and west of the moon. The old woman cannot tell her, but lends her a horse to reach a neighbor who might know, and gives her the apple. The neighbor is sitting outside another mountain, with a golden carding-comb. She, also, does not know the way to the castle east of the sun and west of the moon, but lends her a horse to reach a neighbor who might know, and gives her the carding-comb. The third neighbor has a golden spinning wheel. She, also, does not know the way to the castle east of the sun and west of the moon, but lends her a horse to reach the East Wind and gives her the spinning wheel.

The East Wind has never been to the castle east of the sun and west of the moon, but his brother the West Wind might have, being stronger. He takes her to the West Wind. The West Wind does the same, bringing her to the South Wind; the South Wind does the same, bringing her to the North Wind. The North Wind reports that he once blew an aspen leaf there, and was exhausted after, but he will take her if she really wants to go. She does, and so he does.

The next morning, she takes out the golden apple. The daughter who was to marry the prince sees it and wants to buy it. The girl agrees, if she can spend the night with the prince. The daughter agrees but gives the prince a sleeping drink, so that the girl cannot wake him, and does the same the next night, after she pays the daughter with the gold carding-combs. During the girl's attempts to wake the prince, her weeping and calling to him is overheard by some imprisoned townspeople in the castle, who told the prince of it. On the third night, in return for the golden spinning wheel, the princess brings the drink, but the prince does not drink it, and so is awake.

The prince tells her that she can save him: he will declare that he will not marry anyone who cannot wash the tallow drops from his shirt since trolls, such as his stepmother and her daughter, cannot do it. So instead, he will call her in, and she will be able to do it, so she will marry him. The plan works, and the trolls, in a rage, burst. The prince and his bride free the prisoners captive in the castle, take the gold and silver within, and leave the castle east of the sun and west of the moon.


(Autor desconhecido)


+++ "East of the Sun, West of the Moon" (À Leste do Sol, À Oeste da Lua) é uma lenda do folclore norueguês, que eu achei por acaso enquanto perambulava pela internet. Essa versão foi retirada da Wikipedia e sei que foi escrita bem pobremente. A versão mais completa, contudo, é um tanto mais extensa e não caberia ser postada aqui, mas - aos interessados - ela pode ser encontrada neste link. Infelizmente, não a encontrei em português, mas é possível que exista em algum canto recôndito da websfera.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Contos de William, o Bardo

          Se tem uma característica de Guimarães Rosa que precisa constar em qualquer análise literária de suas obras é seu exacerbado uso de neologismos. “Taurophtongo” (= mugido, dos gregos ‘táuros’ (touro) + ‘phtoggos’ (som da fala)), “ensimesmudo” (= sujeito fechado, de ‘ensimesmado’ + ‘mudo’), “embriagatinhar” (= alguém que engatinha de tão bêbado), “coraçãomente” (= cordialmente) e “nonada” (= coisa sem importância) são todas palavras criadas pelo autor mineiro.
          Mas se, por um lado, ninguém utiliza vocábulos tão peculiares no dia-a-dia, todos os falantes de língua inglesa fazem uso dos neologismos elaborados por um autor inglês, conhecido como O Bardo. Sim, o Bardo de Stratford-upon-Avon (o quão awesome é o nome dessa cidade?): William Shakespeare. O exemplo mais conhecido é a palavra “assassination”. Exatamente: o termo repetido diariamente em quase todos os noticiários do mundo foi uma invenção do pai de Romeu e Julieta. Quer outro exemplo? Há uma montidão [monte + imensidão... gostaram?] deles: champion [campeão], torture [tortura], compromise [acordo; ceder], monumental e até os triviais lonely [solitário] e bedroom (como eles nomeavam o quarto antes eu não faço ideia...).
          Eu sei que parece estranho pensar que palavras tão comuns e tão recorrentes tanto no vocabulário deles quanto no nosso (depois de terem passado por um “aportuguesamento”, claro) só passaram a existir apenas por volta de 1.600. Todavia, se nós pensarmos bem, toda palavra surge de algum lugar, então não faz sentido algum imaginar que de um dia pro outro todos os verbetes estavam prontos para serem usados. E justamente porque cada pequena palavra tem sua própria história é que o estudo da linguagem é tão deslumbrantemente (neologismo?) fascinante para mim.
          Para quem ficou curioso, segue uma lista de outros frutos da genialidade de Shakespeare que, bem ou mal, tornaram-se bastante populares:

- Accuse (acusar)
- Addiction (vício, dependência)
- Advertising (publicidade, propaganda)
- Amazement (espanto, assombro, adimração)
- Bet (apostar; aposta)
- Birthplace (local de nascimento)
- Blanket (cobertor)
- Blushing (corar, ruborizar; tímido)
- Circumstantial (circunstancial)
- Cold-blooded (sangue-frio)
- Countless (incontável)
- Dawn (amanhecer)
- Discontent (discontente)
- Epileptic (epilético)
- Elbow (cotovelo)
- Excitement (exitação)
- Eyeball (globo ocular)
- Gossip (fofoca)
- Green-eyed (olhos verdes)
- Hint (dica, conselho; pista)
- Impartial (imparcial)
- Invunerable (invunerável)
- Majestic (majestoso)
- Mimic (imitar)
- Negotiate (negociar)
- Obscene (obsceno)
- Pedant (pedante; meticuloso; pontual)
- Premeditated (premeditado)
- Secure (seguro, protegido; assegurar)
- Submerge (submergir)
- Worthless (sem valor, inútil)

(No total, o poeta inglês inventou cerca de 1.700 vocábulos que se popularizaram, transformando substantivos em verbos, verbos em adjetivos, juntando palavras em uma única, adicionando prefixos/sufixos etc.)


A lista acima, bem como a última informação entre parênteses, foram retiradas de: http://shakespeare-online.com/biography/wordsinvented.html
Já os exemplos de neologismos rosianos pertencem a: http://veja.abril.com.br/060601/p_162.html

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Tríplice Aliança

Além das ocasiões de escalada na cumplicidade, isto é, quando do namoro surgiu o noivado e quando deste veio o casamento, em três situações tirou a aliança do dedo.

Na primeira, ela enlaçava seu anelar direito. Já há alguns dias exibia com orgulho aquele brilho que lhe custara o salário de toda a primavera. Como durante o verão algumas flores iniciariam um vagaroso processo de recolhimento antes que chegasse a estação seguinte, ele então decidiu trocar as visitas à floricultura (onde encomendava os arranjos multicoloridos) por uma à joalheria. Cinco meses de namoro não eram pouco; na verdade, nenhuma das três garotas anteriores havia aceitado seu jeito errado por tanto tempo. Contudo, não restava dúvidas de que ela o conquistara muito mais do que o inverso. Por isso, naquela aliança estava gravada uma mensagem de agradecimento, mensagem tão apurada que só ela podia sentir.

Naqueles tempos, eles ainda se amavam. Muito. A ponto de rirem um do outro; de discordarem quanto à banda favorita, mas não quanto à música do casal; de não desgrudarem as mãos suadas; de se beijarem como se suas bocas unidas dessem corda em seus corações, para que eles continuassem pulsando. Sim, se amavam, e ele poderia reconhecer a cor dos olhos dela entre outras 999 tonalidades de verde, embora não pudesse nomeá-la. E, agora, havia a aliança para os protegerem contra más venturas: se acaso eles se desentendessem, não poderiam romper seu vínculo, pois isso implicaria em retirar a aliança que, de tão justa, não poderia se desgarrar sem arrancar uma lasca de alma pura.

Ele, entretanto, acabou por aceitar a recomendação de um professor para que mentisse não estar comprometido na entrevista para uma bolsa de estudos na Suíça. Os examinadores costumam supor que aqueles que namoram ou abandonariam a bolsa antes do fim e retornariam por saudades da pessoa querida ou o relacionamento a distância não daria certo, prejudicando a dedicação, a sobriedade e o fígado do estudante. A apenas alguns segundos do momento da entrevista, ele decidiu que seria essa a coisa certa a se fazer: girou a aliança para fora e a guardou no bolso às pressas. Chegou a confessar isso a ela, que, quando acabou de se revoltar, acabou por compreender. O pobre rapaz não foi, contudo, contemplado: perdeu para um candidato que falava três idiomas a mais e que, no dia da seleção, não tinha uma marca vermelha no dedo anelar direito.

Da segunda vez em que deixou sua mão nua, a aliança não era mais prateada, e sim dourada. Discreta, como a atitude deles em público agora. As mãos continuavam entrelaçadas, mas se soltavam à menor necessidade, como pessoas ou postes no meio do caminho. Já não havia mais madrugadas como antes, porquanto a relação estava sossegada como a aurora. Por que ele se incomodava agora se o cabelo dela (que, afinal, só era mesmo sedoso quando ela gastava meia hora aplicando cremes e loções) não conseguia cobrir a ponta de suas orelhas? Seria possível que ela nunca havia reparado que os dentes dele eram realmente tortos, assim como os horríveis dedos do pé? Como se eles não fossem felizes, como se não concordassem satisfeitos que tinham uma história juntos bem mais interessante que o roteiro de qualquer filme romântico.

Desta vez, o consentimento dela veio antes e de imediato. Ele havia rompido um ligamento no pulso e lhe fora solicitado um exame de Ressonância Magnética. Antes de imergir na barulhenta máquina, uma auxiliar de um metro e meio de altura pediu gentilmente que ele se livrasse momentaneamente de qualquer objeto metálico, o anel incluso – exatamente como sua noiva disse que seria necessário. Foi um pouco mais penoso que da vez anterior, uma vez que ele já estava bastante acomodado no dedo, mas logo conseguiu se separar do pequeno grilhão.

Quatro anos e meio depois, foi a vez dela. Primeiro, sua barriga se moldou no formato de um mundo perfeito para um nascituro. Então, faltando dois meses para que o bebê não se contivesse mais dentro de sua mãe, o organismo dela começou a reter líquidos e seus dedos – tão acariciados pelo seu marido por toda a gravidez – começaram a inchar. Temendo que sua aliança tivesse de ser impiedosamente cortada, ela mesma teve a iniciativa de guardá-la em uma gaveta.

A terceira vez em que o homem deixou que o elo de ouro o abandonasse não foi notada. Ele nunca foi capaz de se recordar onde e nem quando isso aconteceu. Só sabia que fora depois da morte de sua mulher, pois jurava que da última vez em que ela, debilitada em uma cama branca de hospital com os olhos semicerrados, segurou sem forças sua mão esquerda, os anéis se encontraram e tilintaram baixinho.

A mais graciosa das metades do casal agora repousava fria embaixo da sonolência da terra afofada. Em um dos poucos momentos em que estava sóbrio, e não embriagado pelas lágrimas do luto, ele sentiu falta do círculo que o abraçava quando sua mulher não podia. Sendo incapaz de encontrar sua própria aliança, recorreu sem pensar duas vezes à de sua amada, pois ela talvez ainda guardasse lembranças do suor tão puro daquela que não voltaria mais. Repetiu o gesto de seu casamento, mas desta vez era sua própria mão que recebia o aro reluzente. Estavam juntos de novo. Presos um ao outro, não desejavam liberdade.

E não houve uma quarta vez.